2001: a odisseia de Kubrick e Clarke

O filme e livro “2001: Uma Odisseia no espaço” foram desenvolvidos simultaneamente, mas enquanto Clarke (o escritor) finalmente optou por explicações mais claras sobre o misterioso monolito e o portal estelar em seu livro, Kubrick (o diretor) decidiu fazer seu filme mais críptico e enigmático ao manter o diálogo e as explicações específicas no nível mínimo. Deixar o máximo a cargo da imaginação do espectador foi também o caminho seguido pelo diretor Andrei Tarkóvski em “Solaris“, a ficção científica apontada por muitos como a resposta russa a “2001”.

hal9000
Dave e o computador “vilão” HAL 9000 – HAL é a sigla para Heuristically programmed ALgorithmic computer.

Sir Arthur Charles Clarke (1917-2008) foi um escritor e inventor britânico, autor de obras de divulgação e ficção científica como o conto “The Sentinel”, que deu origem ao filme “2001: Uma Odisséia no Espaço” (uma pirâmide alienígena é descoberta na Lua, que permanece como uma sentinela dos avanços da humanidade, e emite um aviso após uma explosão atômica), “Fim da Infância” e o premiado “Encontro com Rama” (veja suas resenhas críticas clicando nos respectivos links). Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu na Royal Air Force (Força Aérea Real britânica) como especialista em radares, envolvendo-se no desenvolvimento de um sistema de defesa por radar. Depois, estudou Física e Matemática no King’s College de Londres. Ele propôs o conceito de satélite geoestacionário como futura ferramenta para desenvolver as telecomunicações em um artigo científico intitulado “Can Rocket Stations Give Worldwide Radio Coverage?”, publicado na revista Wireless World em Outubro de 1945. Veja mais sobre o autor e suas obras no SciCast 56.

Stanley Kubrick (1928-1999) foi um cineasta, roteirista, produtor de cinema e fotógrafo americano. Considerado um dos mais importantes cineastas de todos os tempos, foi autor de grandes clássicos do cinema, como Spartacus (1960), Dr. Fantástico (1963), 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971), O Iluminado (1980), Nascido Para Matar (1987) e De Olhos Bem Fechados (1999). “2001”, diz Kubrick, “é basicamente uma experiência visual e não verbal” que evita a palavra dita para alcançar o subconsciente do espectador de um modo essencialmente poético e filosófico.

Monolito
Monolito negro extraterrestre

Kubrick era um cético, como seus filmes anteriores evidenciavam: a fragilidade humana em “O Grande Golpe”, os horrores da guerra em “Glória Feita de Sangue”, a loucura da corrida armamentista em “Dr. Fantástico”. Já Clarke era um otimista. Acreditava que a salvação da humanidade residiria em descobertas científicas e invenções tecnológicas.

Diante dessa oposição, Kubrick buscou um terreno filosófico comum nos estudos de Joseph Campbell. Logo no início da colaboração, o cineasta pediu ao escritor que lesse “O Herói de Mil Faces” (1949), obra fundamental da mitologia comparada, em que Campbell defende que a jornada de todos os heróis mitológicos inclui três fases: separação, iniciação e retorno. O grande mérito de “2001” reside na expansão desse entendimento sobre o herói dos mitos, que os autores aplicaram não a um único indivíduo, mas à trajetória de toda a humanidade.

Na sequência de 2001, Kubrick filmou a adaptação do livro de Anthony Burgess, Laranja Mecânica. Ele conta a história de Alex, um delinquente juvenil que passa as noites se drogando com seus companheiros de gangue, se dedicando a roubos e assaltos e sentindo um prazer especial em praticar a ultraviolência. Preso, opta espertamente por fazer parte de um tratamento experimental de contenção do comportamento violento: a violência do paciente será controlada quimicamente, fazendo-o sentir um mal estar quando um impulso violento surgir dentro de si. Solto e condicionado, não pode mais dar a resposta usual a que estava acostumado. Tenta o suicídio e, por fim, acaba se livrando do condicionamento químico a que foi exposto através de um acordo com um político espertalhão.

A história de Alex apenas atualiza essa mesma tese dentro da famosa cena de 2001 em que um primata, após matar outro (um concorrente), joga o osso que usou como arma para o alto, num gesto triunfal. Na sequência, esse osso vira uma nave espacial. Segundo essa tese, na origem de toda civilização está a violência. Laranja Mecânica promove uma discussão sobre o ataque ao livre-arbítrio promovido por conveniências políticas. Alex é domado, como somos todos ao internalizar controles. Mas, como sua cena final sugere, bem dentro nós, mora uma espécie que gosta do espetáculo da violência.

A música

O filme “2001: Uma odisseia no espaço” é memorável também por sua trilha sonora, resultado da associação feita por Kubrick entre o movimento de satélites e os dançarinos de valsas, o que o levou a usar Danúbio Azul, de Johann Strauss II e o famoso poema sinfônico de Richard Strauss, Also sprach Zarathustra, para mostrar a evolução filosófica do Homem, teorizado no trabalho de Friedrich Nietzsche de mesmo nome – veja mais sobre Nietzsche e o conceito do Super-homem clicando no link.

“Primeiro movimento: Aurora. O homem sente o poder de Deus. Andante religioso. Mas o homem ainda anseia. Ele mergulha na paixão (segundo movimento) e não encontra paz. Ele se vira para a ciência e tenta em vão resolver os problemas da vida em uma fuga (terceiro movimento). Soam as agradáveis músicas de dança e ele se torna um indivíduo. Sua alma se eleva para cima, enquanto o mundo vai afundando debaixo dele.”

Introdução escrita por Richard Strauss para “Assim Falou Zaratustra” (1896), que ele definiu como uma sugestão sonora do estado de espírito do texto literário

O compositor alemão Hans Zimmer também se inspirou nessa música para compor a trilha do filme Interestelar (2015), que possui várias referências ao filme 2001. Complementando o que o Android (no Nerdcast 483 sobre Interestelar) comentou sobre a trilha, o violinista Daniel Lima afirmou:

“As referências do compositor a ‘2001: uma odisseia no espaço’ vão muito além do acorde de dó maior no órgão, acrescentado de algumas dissonâncias, que remete ao famoso ‘Assim falou Zaratustra’, de Richard Strauss. O tema principal de Interestelar também possui uma construção, uma técnica de composição que cria uma ausência de pulsação, onde a massa sonora é contínua e vai se moldando e deformando paulatinamente, fazendo com que a mudança de sonoridade sejam quase imperceptíveis se não forem vistas de uma forma isolada. Essa técnica foi criada pelo compositor húngaro György Ligeti na sua obra ‘Atmosphéres‘, que foi utilizada por Kubrick no início do terceiro ato (Júpiter e Além do Infinito). Kubrick, Nolan e Zimmer foram muito inteligentes em utilizar essa técnica para um filme sobre espaço, visto que o universo funciona desta mesma forma: uma longa e lenta transformação, quase que imperceptível se fosse acompanhada em tempo real, mas gigantesca se olhada em fatos isolados e, acima de tudo, estupidamente bela.”

O início da peça “Assim falou Zaratustra” toca no início do filme, representando o prólogo, o início de tudo. Para simbolizar isso, ele toca a série harmônica com um trompete (começa com um dó bem grave e vai até o mi), e então entra a percussão, trazendo a ideia de humanidade. A série harmônica musical é o conjunto de ondas sonoras composto da frequência fundamental e de todos os múltiplos inteiros desta frequência, resultado da vibração de um instrumento.

O vídeo a seguir foi gravado em uma apresentação da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo em 2018, que executou as obras musicais junto com algumas cenas do filme:

A música “Atmosphéres” trabalha com o conceito de massa sonora, que vai se modificando unicamente, aparentemente sem um ritmo definido. Mesmo assim possui um tempo definido, permitindo que ela seja executada por outras orquestras. “Réquiem”, também de György Ligeti, traduz a sensação sonora que o monolito suscitava na imaginação do cineasta.

A história

O nome “Odisseia” remete ao poema épico da Grécia antiga, de Homero. Sua história relata as viagens de um ser humano rumo ao desconhecido – semelhante ao que acontece nesse livro. Uma possível interpretação do enredo foi dada pelo Android no Nerdcast 294 sobre finais de filmes (começa em 1:20:00) e pela Vicky Salles no Renegados Cast 56 sobre Stanley Kubrick (começa em 1:03:15). Outra fonte é o livro de Amir Labaki, lançado pela PubliFolha.

O filme é formado por três atos:

  • “The Dawn of the Man” (A Aurora do Homem): o nascimento, onde os primeiros ancestrais dos seres humanos dão os primeiros passos evolutivos (como o osso tornando-se uma ferramenta);
  • passagem (sem créditos) na qual o osso vira uma nave espacial e depois começa o embate do homem contra a máquina (quando o super computador HAL 9000 “enlouquece” com a ideia de ser desligado e passa a aterrorizar sua tripulação);
  • “Jupiter and Beyond the infinite” (Júpiter e Além do Infinito), que representa o próximo passo da evolução humana, em uma psicodélica sequência.

Essas três histórias estão interligadas por um ponto chave: o encontro com um monolito extraterrestre com proporção de 1:4:9, que é a mesma da tela do cinema. Quando a tela fica totalmente preta, na verdade estamos olhando para o monolito – também serve como uma preparação emotiva para entrar no clima do filme, onde tudo acontece no tempo do espaço, de modo lento. Veja mais sobre o monolito nesse link.

Em 2001, pesquisadores tinham descoberto um monolito na Lua, que estava enterrado há milhões de anos. Dr. Heywood Floyd é chamado à estação espacial e parte em expedição à cratera lunar Clavius. O monolito envia uma mensagem de rádio, ao ser tocado por Floyd (por isso faz aquele barulho extremamente agudo). Dezoito meses depois, uma nova missão é enviada para Júpiter (mais a frente na história é descoberto o porque disso). Originalmente (e o que permanece no livro), a expedição era direcionada para Saturno, mas seria difícil adaptar os anéis do planeta para o filme.

HAL 9000, o supercomputador com avançada inteligência artificial que controla toda a nave espacial Discovery, alerta o comandante (David Bowman, ou “Dave”) para um sinal de falha num sistema que pode deixar de funcionar em 72 horas. No entanto, o outro astronauta que não está hibernando (Frank Poole) nada descobre. Os dois conversam em uma cabine com os microfones desligados sobre a possibilidade de desligarem HAL caso dê outra falha, mas o supercomputador faz leitura labial e descobre tudo.

Depois, Poole é morto ao sair para repor a peça, Dave é preso do lado externo e os equipamentos que mantém os outros astronautas hibernando são desligados. HAL justifica que “esta missão é importante demais para que o deixe colocá-la em risco”. Em comparação com a Odisseia de Homero, o monstro a ser enfrentado é um ciclope cibernético (daí o único “olho vermelho, que é a câmera de HAL).

Dave conseguiu reentrar na espaçonave (fechando o ciclo da jornada do herói de Homero, em que volta para casa) e zera a memória do HAL. Enquanto finalizava o processo, o computador cantava a música Daisy Bell – composta em 1892 por Harry Dacre e que foi a primeira música a ser cantanda por um computador em 1961, pelo IBM 7094. Logo após, ele vê uma gravação dizendo qual era o real motivo de estarem em Júpiter: tinham encontrado um monolito gigantesco orbitando esse planeta, o que seria a primeira evidência de vida inteligente fora da Terra. Os sinais sonoros da Lua dirigem-se a Júpiter. Então Dave decidiu explorá-lo, sendo sugado por ele.

Dave representa a raça humana evoluída, e é sugado para os extraterrestres verem como ficou a experiência. O monolito é uma ferramenta, servindo para diversos propósitos. Um deles foi acelerar a evolução do homem (por isso que os macacos encontram o monolito começam a usar ferramentas). Em vez de representar os extraterrestres como seres figurativos, que tendem a se tornar ridículos com o tempo, a opção de usar um monolito “deixa um vácuo aberto, que sentimos quando tentamos imaginar o inimaginável”, como disse Kubirck.

A presença do monolito no imaginário coletivo pode ter gerado (de modo consciente ou inconscientemente) o design do iPhone e outros celulares – um monolito portátil, que atua como uma ferramenta para auxiliar nas nossas tarefas, mas nos transformando profundamente em vários aspectos. Quem sabe sabe a série “black mirror” não tirou o título com essa analogia?

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O “novo Dave Bowman” orbitando a Terra

Aquele momento do final do filme que fica cheio de efeitos especais psicodélicos representa a passagem de Dave pelo hiperespaço. Depois ele chega em um planeta, onde é jogado dentro de uma casa fechada para manter David vivo (como se fosse uma gaiola, construída pelas memórias do próprio David) para ser observado pelos alienígenas. Dentro, ele sofre uma transformação, começa a envelhecer e morre na cama. O monolito aparece novamente em cena, e Dave estica o braço para tocá-lo, em uma referência à obra de Michelangelo no teto da Capela Sistina, na qual o homem tenta encontrar Deus. Daí, ele se transforma na criança estelar (uma sonda), é absorvido pelo monolito e volta à Terra, para continuar a experiência. Essa é uma metáfora para o próximo passo evolutivo. O homem sempre movido pela curiosidade.

No filme 2010, o monolito se multiplica e transforma Júpiter em uma estrela (ou seja, ele é multifuncional).

Edição do Milênio do livro "2001: uma odisséia no espaço" com capa e livro todo negro, em forma de monolito.
Edição do Milênio do livro “2001: uma odisseia no espaço” com capa e livro todo negro, em forma de monolito.

Dos filmes de inteligência artificial, esse é um dos que melhor relata o tema, pois HAL age para atingir o objetivo da missão baseado apenas em sua programação inicial – ou seja, mesmo sem consciência, acaba sendo vilão justamente por se ater ao seu código inicial de regras.

Sobre os seres extraterrestres, o livro expõe um ponto de vista bem interessante. Com o avanço da tecnologia, a tendência seria de substituir as frágeis partes orgânicas por materiais mais resistentes. “E, no devido tempo, talvez até mesmo o cérebro fosse embora”, restando apenas a consciência. Assim, atingiram o que muitos chamam de “espírito”. “Em pura energia, portanto, eles se transformaram (…) podiam perambular à vontade entre as estrelas, e afundar como uma névoa sutil através dos próprios interstícios do espaço”. No conto “A Sentinela”, o narrador ainda explica porque largaram um monumento na Lua sem entrar em contato com os seres humanos, dizendo que “seus construtores não se importavam com raças ainda lutando para deixar a selvageria. Teriam interesse em nossa civilização apenas se provássemos a nossa capacidade de sobreviver, cruzando o espaço”.

O livro “2001: Uma Odisseia no espaço” foi o primeiro de uma série de 4 livros: 2001, 2010, 2061 e 3001. Em 2010, o computador HAL 9000 é reativado e descobrem que os mesmos seres inteligentes que nos deixaram os monolitos estão desenvolvendo vida no satélite jupiteriano Europa. Quando a nave Leonov finalmente chega ao monolito, este não apresenta nenhuma reação durante um longo tempo, até que o “Novo Dave Bowman” reaparece e avisa a tripulação que a Leonov deve voltar para Terra o quanto antes. Eles escapam bem a tempo da explosão de Júpiter causada pelo monolito, que transforma o antigo planeta em uma nova estrela, um segundo sol, e HAL transmite uma mensagem dos donos dos monolitos a toda a humanidade: “TODOS ESTES MUNDOS SÃO SEUS EXCETO EUROPA. NÃO TENTEM ATERRISSAR LÁ!”. Em 2061, Dr. Heywood Floyd, agora com 103 anos, parte numa nave em turística ao Cometa Halley, mas acaba indo para o Satélite Europa, o satélite proibido, em missão de resgate, quando uma nave cai ali com seu neto a bordo. Já em 3001, o corpo de Frank Poole, que se acreditava morto havia mil anos, é recuperado dos gélidos confins da galáxia.

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9 comments

    1. Eu que escrevi. Como sou o responsável pelo site, não assinei diretamente. Espero que tenha gostado do texto e que lhe seja útil.

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