O Fim da Infância

O título faz lembrar comentários do tipo “na minha infância, as crianças tinham brinquedos mais legais e sabiam se divertir”, mas não tem nada a ver com isso. Esse é o título do livro de ficção científica escrito por Arthur C. Clarke em 1953. Durante a Guerra Fria, surgem imensas naves sobre as principais cidades do mundo, e seus misteriosos ocupantes iniciam o domínio sobre a Terra, mas de modo pacífico e gerando muitos benefícios. Porém, quais são suas reais intenções? O desenrolar do livro revela ações além dos limites da humanidade, promovendo uma discussão sobre evolução, física, filosofia, sentido da vida e também explica uma célebre frase apresentada no próprio livro: “as estrelas não são para os homens”. Saiba mais sobre sua história, alguns pontos que achei interessantes para discussão e alguns comentários. Atenção: esse texto está cheio de spoilers!

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Em plena Guerra Fria, enquanto russos e americanos se preparam para a corrida espacial, imensas naves surgem sobre as principais capitais do mundo. Mas elas não vieram do espaço para nos destruir – como geralmente acontece quando uma civilização mais avançada encontra outra menos desenvolvida. Seus misteriosos ocupantes, chamados de Senhores Supremos, dominam a Terra na forma de tutores, pacificamente e por intermédio da ONU, melhorando muito as condições de vida da humanidade.

Em um momento do livro, é demonstrado como o poder superior dos alienígenas é aplicado na humanidade para reprimir a violência. Essa aplicação parece com o que o filósofo Immanuel Kant escreveu em “A Metafísica da Moral” (1797): “Existe… só um imperativo categórico, que é este: Aja apenas segundo a máxima que você gostaria de ver transformada em lei universal.” No trecho a seguir, veja o que acontece durante uma tourada na Plaza de Toros, em Madri:

“A primeira lança voou como um raio, acertou [o touro] e, nesse momento, surgiu um som jamais ouvido antes na Terra. Era o som de dez mil pessoas gritando com a dor do mesmo ferimento. Dez mil pessoa que, quando se recuperaram do choque, descobriram-se completamente ilesas. Aquele, porém, foi o fim da tourada e, de fato, de todas as touradas”. (p. 61)

Ainda sobre questões criminais, eles possuíam uma máquina que podia mostrar qualquer ponto da história humana, podendo revelar quem teria causado o crime. Mais do que isso, forneceria o que realmente aconteceu em momentos chave da humanidade, como na época do surgimento das religiões. É citado que “embora tivesse sido óbvio, para qualquer mente racional, que todas as escrituras religiosas do mundo não poderiam ser verdadeiras, o choque foi, mesmo assim, profundo.” (p. 97) Porém, a tecnologia era apresentada como seu produto final para a humanidade, e não todos os pormenores de como funcionava. Considerando fé como uma opinião de que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova, parece que a fé agora voltou-se para os Seres Supremos, já que acreditam que o que tem nessa máquina é verdadeiro mesmo sem conhecer seu funcionamento. Como diria o próprio autor do livro, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.

O florescimento dessas melhorias surgiram de profundas mudanças na sociedade: foi criado o Estado Mundial; foram abolidas as forças armadas (o que duplicou a riqueza do mundo); as máquinas encarregam-se sozinhas da produção de praticamente todos os bens e serviços; os homens passaram a se dedicar exclusivamente a atividades de seu genuíno interesse. Veja alguns trechos que ilustram essas mudanças:

“Era um Mundo Unificado. Os velhos nomes dos velhos países ainda eram usados, mas não passavam de divisões postais convenientes. Não havia ninguém na Terra que não soubesse inglês, que não soubesse ler, que não tivesse acesso a um aparelho de televisão, que não pudesse visitar o outro lado do planeta em vinte e quatro horas.” (p. 94)

“As pessoas podiam se permitir esses caprichos [viajar intensamente], pois tinham tanto o tempo como o dinheiro. A abolição das forças armadas havia, de uma hora para outra, quase que dobrado a riqueza efetiva do mundo, e o aumento da produção fizera o resto. (…) Tudo era tão barato que as necessidades da vida eram gratuitas, oferecidas como serviços públicos pela comunidade tal como as estradas, a água, a iluminação pública e os esgotos eram fornecidos antigamente. Um homem podia viajar para onde quisesse, comer o que desejasse… sem tirar dinheiro do bolso. Ganhara esse direito por ser um membro produtivo da comunidade” (p. 147)

Mas e quanto às pessoas que se acomodam, sem contribuir para a comunidade? Segundo as palavras de Oscar Wilde, “Viver é a coisa mais rara do mundo – a maioria das pessoas apenas existe”. Veja o que é comentado no parágrafo seguinte:

“Havia, é claro, alguns vadios, mas o número de pessoas com a vontade necessária para se abandonar uma vida de completa inatividade era muito menor do que em geral se suporia. Sustentar esses parasitas era um fardo consideravelmente menor do que manter os exércitos de cobradores de passagens, balconistas de lojas, caixas de bancos, corretores e assim por diante, cuja principal função, quando se olhava do ponto de vista global, era transferir itens de uma coluna para outra, em um livro contábil.” (p. 147)

Note a crítica de desperdiçar recursos com um sistema financeiro/monetário. Em outro trecho, também apresenta que as tarefas mecânicas que gastam o tempo e o potencial do cérebro humano foram transferidas às máquinas. Elas me fazem lembrar o Mito de Sísifo, um personagem da mitologia grega condenado a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido. No ensaio filosófico escrito por Albert Camus, em 1941, no qual introduz sua filosofia do absurdo: o do homem em busca de sentido, unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível desprovido de Deus e eternidade. Será que a realização do absurdo exige o suicídio? Camus responde: “Não. Exige revolta”. Imagine só esse raciocínio elevado ao mais extremo grau, nas atividades rotineiras de que estamos presos como transporte, alimentação, usar o banheiro, dormir …, o tempo que ficaria livre para desenvolver o cérebro ao seu potencial máximo?

Quais os problemas desse Admirável Mundo Novo?

Com inúmeros progressos, a humanidade segue seu caminho rumo a uma era de paz plena e duradoura, que perdura por 200 anos após a chegada das naves. Existem poucos focos de resistência, que são logo desacreditados e rapidamente levados ao esquecimento. Porém, uma dúvida assombra a humanidade: quais seriam os verdadeiros objetivos dos Senhores Supremos? Até quando suas políticas iriam coincidir com o bem-estar dos homens?

Dessa forma, também começa a aparecer mais no livro a questão do livre-arbítrio (essa questão também é debatida no livro Fim da Eternidade, de Isaac Asimov, cuja resenha pode ser acessada clicando no link). A grande evolução na qualidade de vida e na tecnologia, a superioridade e a onipresença dos Senhores Supremos retira da humanidade essa peça fundamental e acaba por afetar muitos outros campos, tal como a arte. O trecho a seguir do livro aborda o tema, e também me faz lembrar a música do Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama Ao Caos (“E com o bucho mais cheio / Comecei a pensar / Que eu me organizando / Posso desorganizar / Que eu desorganizando / Posso me organizar”):

“Nenhuma Utopia poderá dar satisfação a todo mundo, o tempo todo. À medida que suas condições materiais melhoram, os homens aumentam suas expectativas e vão ficando descontentes com os poderes e posses que, antes, pareciam estar além de seus sonhos mais loucos. E, mesmo quando o mundo exterior lhes tiver concedido tudo o que é possível, ainda permanecem as inquirições da mente e os anseios do coração.” (p. 119)

Em troca de todos os benefícios, os Senhores Supremos exigiam que os seres humanos não prosseguissem com projetos de explorações espaciais, lhes advertindo que “as estrelas não são para o homem” (p. 180), e que também não era permitido a ninguém conhecê-los, alegando que haveria um choque cultural muito grande para quem o fizesse. Mas a humanidade desenvolveu-se a ponto de avançar para uma nova etapa. Como diria o filósofo Nietzsche, no livro Assim Falou Zaratustra: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?” (veja mais sobre o Übermensch, ou super-homem, clicando no link).

Um dos personagens decide por viajar ao espaço como clandestino em uma nave dos Senhores Supremos para onde seria o lar desses seres, a estrela NGS 549672 (nesse link tem uma discussão sobre a existência dessa estrela). Em sua carta de despedida, ele comenta sobre o funcionamento da nave e as implicações de se viajar próximo da velocidade da luz:

“Deixam o sistema solar submetidas a uma aceleração tão alta, que se aproximam da velocidade da luz em menos de uma hora. Isso significa que os Senhores Supremos devem possuir qualquer tipo de sistema propulsor que atua igualmente em todos os átomos de suas naves, de modo que nada a bordo possa ser esmagado de uma hora para outra. Não sei por que utilizam acelerações tão colossais, quando dispõem de todo o espaço e poderiam demorar mais tempo para aumentar sua velocidade. Minha teoria é que elas são capazes, não sei como, de abastecer-se nos campos energéticos em volta das estrelas e por isso têm que acelerar e parar enquanto estão próximas de um sol.” (p. 161)

“Ora, como você talvez tenha ouvido dizer, coisas estranhas acontecem quando a gente se aproxima da velocidade da luz. O próprio tempo começa a fluir a um ritmo diferente, a passar mais devagar, de modo que, o que na Terra seriam meses, nas naves dos Senhores Supremos não serão mais do que dias. O efeito é fundamental: foi descoberto pelo grande Einstein há mais de cem anos. Fiz alguns cálculos, baseados no que sabemos sobre impulso estrelar e usando os resultados, já estabelecidos, da teoria da relatividade. Do ponto de vista dos passageiros de uma das naves dos Senhores Supremos, a viagem a NGS 549672 não demorará mais de dois meses, embora, pelos padrões da Terra, se tenham passado quarenta anos.” (p. 162)

Para economizar recursos (ar, água, comida), utilizaria a narcosamina, descoberta durante pesquisas no campo da hibernação animal. Tudo o que fazia era tornar mais lento esse processo, embora o metabolismo continuasse, a nível reduzido.

Na terceira parte do livro, discutisse muito o declínio das artes devido à redução de conflitos humanos. Inclusive uma nova cidade é fundada em uma ilha de pessoas descontentes com os Seres Supremos e que desejam valorizar as criações humanas, e não apenas uma recepção passiva de entretenimento como a televisão. Uma criança, habitante da ilha, começou a ter sonhos com planetas diferentes, como um de Sol azul e outro com seis sóis. Sua mãe que tinha recebido as mensagens “do além” em uma brincadeira de anos atrás.

Consciência coletiva

Os Seres Supremos possuem um curioso interesse sobre relatos de fenômenos considerados pelos humanos como sobrenaturais, como conversar com espíritos. Em um momento do livro, os humanos fazem uso de um disco para “conversar com os mortos” e fazem a pergunta “quem é você?”, ao que é respondido “sou todos”. Parece uma espécie de consciência coletiva, talvez de mortos ou outros seres, se comunicando com os homens de uma maneira na qual não estamos familiarizados, fazendo uso de um “sexto sentido”. Veja como essa telepatia é explicada:

“Imagine que a mente de cada homem seja uma ilha, rodeada pelo oceano. Cada uma parece isolada, mas, na realidade, todas estão ligadas pelo leito rochoso onde brotam. Se os oceanos desaparecessem, seria o fim das ilhas. Todas seriam parte de um continente, mas na sua individualidade teriam desaparecido (…) Em circunstâncias propícias, as mentes podem se fundir, compartilhar os conteúdos umas das outras e trazer consigo memórias e experiências, quando voltam a se isolar.” (p. 226)

No final do livro, os Seres Supremos apresentam à humanidade que foi salva por eles da auto destruição, que estava somente olhando para a ciência e esquecendo-se do lado místico. Por fim, acabam revelando seu verdadeiro propósito: os Seres Supremos estão em seu topo evolutivo e que são instrumento de uma Mente Suprema para elevar novas espécies (como a raça humana) a uma nova condição, para dar continuidade à evolução, e a criança que teve os sonhos (e todas as outras crianças, posteriormente) era parte dessa experiência. Essa seria a última geração de homo sapiens e que uma Mente Suprema desejava crescer para uma nova espécie. As crianças “serão uma só entidade, assim como vocês mesmos são a soma de suas incontáveis células” (p. 238).

E assim as crianças, que já apresentavam poderes mediúnicos e materiais além da raça humana, foram levadas e a humanidade pereceu. “As inúmeras gotas de chuva teriam se misturado ao oceano” (p. 240). Lembra o filme “Blade Runner”, em que é falado sobre a vida que “Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”

Uma discussão semelhante aparece no primeiro filme da série Star Trek (1979), [spoiler do filme] no qual uma estação de monitoramento da Frota Estelar detecta uma força alienígena escondida dentro de uma enorme nuvem de energia que se move pelo espaço indo em direção a Terra. No coração da gigante nave, V’Ger (uma máquina viva) é revelado como sendo Voyager 6, uma sonda do século XX da Terra. A sonda danificada foi encontrada por uma espécie alienígena de máquinas vivas, que interpretaram sua programação original como instruções para aprender tudo que há para ser aprendido e retornar essas informações de volta para o Criador. Spock percebe que V’Ger não possui a habilidade de definir um objetivo por si próprio além de sua programação original, ela acha sua existência vazia e sem propósito. O que V’Ger precisa é evoluir, e para isso precisa se unir ao seu criador (o ser humano), pois uma qualidade humana é a capacidade para saltar além de lógica. [fim do spoiler do filme]

E quanto àquele personagem que foi e voltaria 80 anos depois? Ele conseguiu visitar o planeta dos Senhores Supremos, teve muita dificuldade na comunicação (mesmo os gestos eram estranhos à cultura alienígena) e sentiu-de como um homem da Idade da Pedra na civilização. O planeta não tinha rua, mas tinha montanhas que se moviam, todos voavam, sentia que haviam sons que ele não conseguia ouvir (por estar em outras frequências) e (deu a entender) ninguém dormia. Visitou um museu sobre o planeta Terra . Quando voltou ao planeta natal, a humanidade já não existia mais, e sim a nova raça evoluída das crianças. À respeito dessa nova raça, seus elementos agiam em conjunto como uma manda e “deixaram essa necessidade [de se alimentar] para trás, pois (…) aprenderam a acessar fontes mais vasta [de energia].” (p. 260) Começaram a brincar com as montanhas, rios, a Lua, e a comandar as forças que regem o universo. O personagem narrou até a Terra liberar uma imensa quantidade de energia e a nova raça concluir sua metamorfose.

Tecnologia

O texto chega a ser visionário em vários momentos. No seguinte trecho, faz lembrar a utilização atual dos hologramas, concebido teoricamente em 1948 e utilizado somente a partir dos anos 1960: “Aposto que os Senhores Supremos não usam equipamentos tão grosseiros quanto uma tela física. É mais provável que materializem as imagens diretamente no ar”.

Nesse outro trecho, parece prever as pílulas anticoncepcionais, cujo uso começou somente nos anos 1960, e os testes de DNA, que começaram a ser utilizados somente a partir da segunda metade da década de 1980: “o modelo de moralidade sexual, se é que podemos que existia um só modelo, havia se alterado de maneira radical. Tinha sido praticamente despedaçado por duas invenções, que foram, por ironia, de origem cem por cento humana e nada deviam aos Senhores Supremos. A primeira foi um contraceptivo oral totalmente seguro. A segunda, um método, igualmente infalível, de identificação do pai de qualquer criança, tão preciso quanto impressões digitais”. (p. 95)

Outro ponto que não é novidade na história humana, mas que faz lembrar do Google e do Facebook. No início, houve o sequestro do líder da ONU, que estava em contato com os Seres Supremos, mas que depois foi salvo graças às tecnologias extraterrenas. Após o resgate, o representante dos Seres Supremos comenta “eu não tinha como saber quais, dos dois bilhões e meio de homens neste planeta, eram os verdadeiros líderes da organização. Agora que foram identificados, posso seguir seus movimentos em qualquer lugar da Terra, e vigiar suas ações de perto, se assim desejar. Isso é muito melhor do que prendê-los. Se fizerem qualquer coisa, denunciarão os demais camaradas. Estão, com efeito, neutralizados, e sabem disso.” (p. 65)

Veja mais posts com obras de Arthur C. Clarke, como Encontro com Rama e 2001: Uma Odisseia no Espaço clicando nos respectivos links. O livro utilizado como referência para numeração das páginas foi o da editora Aleph (2010), com tradução de Carlos Angelo.

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