Turbulência e Ábaco de Harrison

Em mecânica dos fluidos, a turbulência ocorre quando um fluido movimenta-se de modo que suas partículas se misturam de forma não linear, isto é, de forma caótica e gerando redemoinhos. Na aviação, ela pode surgir de diferentes formas:

  • em cidades e superfícies rugosas, resultante do atrito de ventos fortes com a superfície (os obstáculos forçam a turbulência a se expandir na vertical)
  • a sotavento de montanhas, devido ao relevo acidentado (“barlavento é onde BAte o vento, e sotavento é onde SOLTA o vento”)
  • em regiões com aquecimento mais intenso, gerando as térmicas (torres de convecção de ar quente) localizadas, sendo mais comuns quanto mais quente (no verão, a tarde sobre os continentes e a noite sobre os oceanos)
  • devido à perturbação do movimento da própria aeronave ou de outras (chamada de esteira de turbulência)
  • por causa de variações bruscas na direção e/ou intensidade da velocidade do vento em (conhecida como tesoura de vento ou “windshear”)
  • nas proximidades das correntes de jato (circulação atmosférica em altos níveis que representa um máximo da velocidade do vento, como se fosse uma correnteza de um rio)

Uma turbulência pode ter intensidade fraca (chacoalhar normal), moderada (necessário uso do cinto de segurança), forte (objetos podem sair do lugar dentro da aeronave) ou severa (pode gerar danos estruturais nas aeronaves). As turbulências severas geralmente ocorrem em nuvens de tempestades severas e situações muito particulares, podendo ser evitadas com antecedência.

Acredita-se que a turbulência severa tenha sido responsável por vários incidentes e acidentes aeronáuticos, inclusive a desagregação em pleno ar do voo BOAC 911, um Boeing 707 próximo ao Monte Fuji (Japão) em 1966, assim como a perda de um motor em pleno ar de um Boeing 747 cargueiro da Evergreen International Airlines próximo a Anchorage (Alaska/EUA) em 1993.

Tem como prever a turbulência?

Como a turbulência ocorre no ar, ela é invisível. Quando ocorrem em altos níveis, são conhecidas como turbulência de céu claro (ou CAT, do inglês “clean air turbulence”) por não ter nenhum indicativo visual. No entanto, podem vir acompanhadas de nuvens cirrocumulus ou estarem próximas a áreas com nuvens cumulonimbus. Ou seja, as nuvens podem indicar regiões onde já ocorre o fenômeno, desde haja vapor d’água suficiente e perfil vertical de temperatura adequado para sua formação.

Esquema de formação de turbulência orográfica e nuvens formadas. Fonte: COMET Program
Esquema de formação de turbulência orográfica e nuvens formadas. Fonte: COMET Program

Outro indicativo visual associado a regiões de turbulência são as chamadas nuvens lenticulares e as nuvens rotores. Elas são formadas devido às ondas de gravidade, que são mudanças periódicas de pressão atmosférica e temperatura em um fluxo laminar de ar, causadas por uma perturbação vertical. Essa perturbação costuma ser orográfica, ou seja, devido a um platô seguido de uma baixada, uma montanha, uma cordilheira ou até mesmo uma térmica muito intensa. A perturbação força um movimento ondulatório a sotavento, gerando um vórtice horizontal turbulento chamado rotor.

As nuvens lenticulares (“lenticular clouds”) ocorrem devido a ventos fortes contra uma barreira natural ou montanha. Quando uma parcela de ar sobe, ela esfria, gerando condensação e formação de gotículas de nuvens. Como o fluxo resultante do impacto, o ar flui em camadas e gera nuvens no formato de lentes, as altocumulus lenticulares.

Sistema de ondas com nuvens rotores. Fonte: Chess in the air
Sistema de ondas com nuvens rotores. Fonte: Chess in the air

Quanto às nuvens rotores (“rotor clouds”), geralmente se formam junto ou abaixo das lenticulares. Elas são formadas devido à circulação rotativa do ar em alta velocidade em regime turbulento. As nuvens do rotor podem parecer nuvens cumulus pequenas paralelas à inclinação da montanha. Em outros momentos, as nuvens do rotor podem aparecer como uma enorme rua de nuvens. Em ambos os casos, às vezes é possível ver a rotação da nuvem.

Assim como as nuvens lenticulares, as nuvens rotores tendem a ser estacionárias acima do solo. A nuvem se forma devido a correntes de ar na borda principal e se dissolve devido a correntes de ar na borda de fuga. O ar embaixo e dentro da nuvem do rotor é geralmente muito turbulento, enquanto o fluxo de ar na onda logo acima do rotor tende a ser suave e laminar.

Por fim, note que ocorre a formação de nuvens e nevoeiro a barlavento da montanha (“cap clouds”), restando um ar mais seco a sotavento. Elas podem se formar mesmo com ventos fracos, ou seja, não são indicativo de turbulência.

Existem radares que permitem detectar variações na densidade do ar e indicar se a região apresenta turbulência. No entanto, o mais comum com relação ao uso de radares é a detecção de regiões com chuva forte e granizo. Como esses fenômenos ocorrem em regiões com movimentações muito fortes de massas de ar, elas comummente estão associadas a turbulência. Desse modo, também é possível usar imagens de satélite para inferir regiões propensas a turbulência nas próximas horas ou dias.

Modelo de previsão numérica não fornecem taxas de detecção aceitavelmente altas e ao mesmo tempo taxas de alarme falso baixas para reduções significativas. A turbulência é um fenômeno de micro escala, com os turbilhões variando num espectro de centenas de quilômetros até centímetros. Por isso, não é simulada diretamente nos modelos numéricos devido as atuais resoluções empregadas e por restrições computacionais. Assim, indicadores de turbulência são utilizados tomando por base o princípio de que a energia associada às escalas menores surgem a partir das maiores, e estas podem ser resolvidas pelos modelos.

Ábaco de Harrison

Na engenharia, o ábaco é um gráfico que permite resolução de problemas, substituindo cálculos numéricos por visualizações gráficas. O ábaco de Harrison permite o diagnóstico de turbulência no cruzamento aéreo da Cordilheira dos Andes. Para o cruzamento dos Andes, devido aos ventos de oeste, a turbulência ocorrerá a leste da cordilheira (sotavento).

Um dos fatores que influenciam na intensidade do vento é o gradiente de pressão: quanto maior a diferença da pressão entre dois pontos, mais intenso deve ser o vento. Em 1957, J. Harrison publicou um método para previsão de ondas orográficas sobre as Montanhas Rochosas (EUA) relacionando os reportes de turbulência com a máxima velocidade do vento entre 15 mil e 20 mil pés e a diferença de pressão de cada lado da montanha. Com isso, gerou um diagrama relacionando a diferença de pressão entre dois pontos e o máximo da componente normal (de oeste para leste) do vento. Assim, foram demarcadas regiões para ondas orográficas “moderadas a fortes”, “fracas” e “sem ocorrência”.

Um estudo conduzido por Souza (2018) investigou o fenômeno no cruzamento dos Andes, com foco na rota Santiago/Mendoza. Essa rota é a preferencial para o cruzamento da cordilheira, mas também apresenta proximidade com o pico Aconcágua (o mais alto das Américas, com 6962 metros) apresenta muitos registros de turbulência na região. Foram usados os dados de QNH (pressão reduzida ao nível do mar) dos aeroportos de SCEL (Santiago) e SAME (Mendoza) e os dados de direção e velocidade do vento no FL180 (500 mb) dos dias identificados com turbulência, assim como cartas de previsões, nos anos de 2016 e 2017.

Considerando que a construção do Ábaco de Harrison tem por base apenas valores positivos de diferença de pressão (SCEL/SAME) e de componente do vento normal à cordilheira, houve uma probabilidade de Detecção (fração do total de eventos que ocorreu e foi corretamente previsto pelo modelo) de 85,3%. Isso mostra que o ábaco pode servir como ferramenta no auxílio ao Previsor na identificação de possíveis turbulências para o cruzamento da Cordilheira dos Andes.

Ábaco de Harrison. Adaptado de Meteototal
Ábaco de Harrison. Adaptado de Meteototal

Para uso, deve-se consultar os valores previstos (ou observados) de QNH (pressão reduzida ao nível do mar) para os aeroportos de SCEL (Santiago) e SAME (Mendoza) e calcular sua diferença. Esse valor deve ser localizado no eixo x – note que não existe turbulência para diferenças menores que 7 mb (1 mb = 1 hPa). Depois, consulte o valor de vento em 500 mb para o mesmo tempo e localize no eixo y. A região em que o cruzamento das duas linhas cair define como deve ser a turbulência na rota entre as duas regiões.

Fontes

  • Chess in the air – How can I “see”? wave
  • Avaliação dos resultados do ábaco de Harrison no diagnóstico de turbulência no cruzamento da Cordilheira dos Andes, Filipe Menegardo de Souza – ICEA (Instituto de Controle Do Espaço Aéreo), São José dos Campos, 2018. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/setor-regulado/profissionais-da-aviacao-civil/meteorologia-aeronautica/arquivos/MET001V_Final_RevisaoBanca_2TMENEGARDO.pdf
  • Divulgação Operacional nº 003/2011 – SIPAER (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos). Disponível em: http://sistema.cenipa.aer.mil.br/cenipa/paginas/relatorios/prevencao/DIVOP_003_2011.pdf
  • Wikipedia – Onda estacionária
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