As nuvens dos quintanares

Mário Quintana (1906-1994) publicou seu poema “Canção de barco e de olvido” na obra Canções em 1946 – seu segundo livro, após A rua dos cataventos (1940). Ele ilustra muito bem uma temática constante em seus textos: as coisas simples, como as estrelas, o azul do céu, o vento, as nuvens, etc. Seu estilo criativo e inovador deu origem a um novo verbete da língua portuguesa com esse poema, “quintanares”, para designar todos os poemas criados por ele, prosa ou verso.

Canção de barco e de olvido

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas…
Ai lampiões de fins de linha…
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

(Canções)

Dedicada ao amigo Augusto Meyer, ela apresenta estrutura bem tradicional para a forma de canção: quatorze versos, distribuídos em três quartetos e um dístico no desfecho do poema. Os versos possuem métrica bem regular, com suas redondilhas (heptassílabos) despertando ritmo bem marcado o qual acentua a musicalidade. A presença de rimas alternadas, toantes e consoantes, dão equilíbrio e
leveza ao texto.

Assim como em poemas anteriores, a temática de embarcação é retomada neste poema, não só no título, mas nos próprios versos que apresentam o poeta em busca de outros ares. A transitoriedade é algo certo, infalível, assim como as mudanças, o tempo que passa, a visão de tudo mudando. A metáfora do barco pode ser interpretada como o movimento que o ser humano realiza ao ― navegar pela vida, sem se deter.

Dentro dessa interpretação, o “mapa das nuvens” contém uma interessante dualidade. Um mapa presume objetividade, para encontrar a melhor forma de ir de um ponto A para um ponto B. Já as nuvens são mutáveis. Elas aparecem, desaparecem e mudam de posição constantemente. Desse modo, um mapa das nuvens, que somente seria útil por um curto período de tempo, traz a ideia de que não é preciso pressa e objetividade o tempo todo para se viver a vida, e sim aproveitar cada momento contemplando a existência.

Exegese

– Mas que quer dizer esse poema? perguntou-me alarmada a boa senhora.

– E que quer dizer uma nuvem? – retruquei triunfante.

– Uma nuvem? – diz ela. – Uma nuvem umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo…

(Sapato Florido)

Em “Exegese”, faz-se o leitor pensar em cada palavra do poema contendo coisas do cotidiano. O próprio título sugere essa questão: exegese significa interpretação, explicação cuidadosa de um texto, de uma obra artística; o poeta, em vez de responder, ajuda a leitora a interpretar o poema fazendo-a pensar. Assim, a leitura de poemas pode ser um exercício de tentar descobrir o prazer, reaprender a olhar o mundo não vendo apenas a utilidade das coisas.

O auto-retrato

No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…

e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!

(Apontamentos de História Sobrenatural)

Como um pintor, em “O auto-retrato”, o poeta vai se revelando em cada palavra, cada verso, até conseguir obter uma imagem de si mesmo. O processo de construção do poema se mescla com o da construção do poeta: conforme as imagens surgem, busca sua semelhança.

Olho as minhas mãos

Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar…
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras !
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: “existo”.
Porque apenas existem…
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar…
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação!
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos?
Quem faz – em mim – esta interrogação?

(Apontamentos de História Sobrenatural)

O poema “Olho as minhas mãos” segue bem contemplativo mas também investigativo. Só é possível fazer poesia quando se entrega à observação com olhares minuciosos.

Cântico

O vento verga as árvores, o vento clamoroso da aurora…
Tu vens precedida pelos vôos altos,
Pela marcha lenta das nuvens.
Tu vens do mar, comandando as frotas do Descobrimento!
Minh’alma é trêmula da revoada dos Arcanjos.
Eu escancaro amplamente as janelas.
Tu vens montada no claro touro da aurora.
Os clarins de ouro dos teus cabelos cantam na luz!

(Melhores Poemas)

O poema “Cântico” faz referência ao bíblico “Cântico dos cânticos” de Salomão. Ele começa com uma descrição da natureza, incluindo os elementos meteorológicos ventos e nuvens. Eles vêm anunciando a chegada de uma misteriosa personagem que, ao mesmo tempo em que vem do mar, vem também montada no touro que anuncia essa mesma aurora. As janelas tem um simbolismo relacionado à própria alma (os olhos como a janela da alma).

“As únicas coisas eternas são as nuvens“ já escreveu Mario Quintana. É interessante, pois elas são efêmeras: mudam de forma a todo instante. À qual eternidade se referia o poeta? Talvez se refira àquelas que se eternizam através da poesia. Também já escreveu “Viver tão só de momentos Como estas nuvens no céu” e “Não esquecer que as nuvens estão improvisando sempre, mas a culpa é do vento”.

Mario Quintana no Centro Cultural que leva seu nome, antigo Hotel Majestic de Porto Alegre, onde morou de 1968 a 1980. Foto: Dulce Helfer / Correio do Povo
Mario Quintana no Centro Cultural que leva seu nome, antigo Hotel Majestic de Porto Alegre, onde morou de 1968 a 1980. Foto: Dulce Helfer / Correio do Povo

A chuva também é presente em seus poemas. Veja alguns exemplos:

Sempre que chove

Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo…
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!

(Preparativos de Viagem)

Chove!

Chuva
Chuva
Chuva
Vontade
Chuva
De fazer não sei bem o que seja
Vontade de escrever Sagesse, de Verlaine
E tarde gris, tão viúva,
Vai derramando perenemente as suas lágrimas de chuva
Abundantes
Como lágrimas de fita cômica
Cômica
Cômica

(1925)

As interpretações foram baseadas na tese de Rosilene Frederico Rocha Bombini, O universo metalinguístico na obra de Mario Quintana: uma poética da linguagem, e o post Nuvens eternas do blog ArtenaRede.

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