A peça do autor grego Aristófanes intitulada “As Nuvens” foi encenada pela primeira vez no ano de 423 a.C. É uma comédia dirigida contra os sofistas, apresentando situações que criticam com bom humor essa forma de pensar. Além disso, as nuvens são tratadas como divindidades, revelando como a sociedade da época explicava os fenômenos atmosféricos. O livro está disponível online nesse link.
Resumo
O velho Estrepsíades é um homem cheio de dívidas que decide frequentar a escola do Sócrates para aprender a retórica – a arte do discurso. Seu objetivo é engambelar seus credores (veiacagem, no bom mineirês). Como é um pouco desprovido de inteligência e não consegue acompanhar os ensinamentos, ele convence seu filho, Fidípedes, para assumir seu lugar na escola e aprender as artimanhas da persuasão. Um embate de argumentos entre duas entidades (justo e injusto) encaminha o destino do rapaz. Quando o filho encontra os credores, basicamente ele os deixa mais bravos mas consegue que as dívidas não sejam cobradas naquele momento. Além disso, consegue fazer uso da arte do discurso para convencer que pode bater em seu próprio pai. Termina com o pai incendiando a casa de Sócrates.
Obs.: Na obra de Platão, Sócrates é visto como inimigo dos sofistas. Já nessa peça, ele é um grande aliado dos sofistas. Uma possível explicação para essa escolha de Aristófanes é que, simplesmente, Sócrates era uma personalidade da época e o autor queria ridicularizá-lo como parte da comédia, ou por acreditar que Sócrates não era muito diferente dos sofistas – queria persuadir as pessoas, ganhar notoriedade.
Divinas Nuvens
Estrepsíades encontrou Sócrates pendurado em um cesto, pois o filósofo julgava que assim poderia ter pensamentos mais claros. Esse tipo de atitude tem um embasamento em como a natureza era entendida na época. Conforme documentado por Aristóteles no tratado “Meteorológica” alguns anos depois de Aristófanes, exalações são produzidas continuamente pela Terra e podem ser úmidas (ou vaporosas) e secas (ou fumarentas). Depois, o vapor de água é novamente atraído pela terra, voltando sob a forma de chuva. Analogamente, a terra teria o poder de atrair para si a seiva do pensamento, perturbando a reflexão.
Em sua conversa, Sócrates sugere que “os deuses são moeda fora de circulação” para que Estrepsíades adorar outras divindades: as nuvens. Apesar da sociedade grega ser politeísta, atribuindo a ocorrência de muitos fenômenos naturais às vontades divinas, a atribuição de divindade às nuvens é invenção de Aristófanes – diferentemente do Ar ou do Éter em alguns casos. Então Sócrates invoca as nuvens:
“Senhor soberano, Ar incomensurável, que sustentas a Terra suspensa no espaço! Éter brilhante e veneráveis deusas, Nuvens, portadoras do trovão e do raio! Levantai-vos, Senhoras, mostrai-vos ao pensador, suspensas no ar! (…) Então vinde, Nuvens augustíssimas, para mostrar-vos a este homem. Quer vos assenteis nas sagradas cumeeiras do Olimpo, batidas pelas neves, ou estejais nos jardins do vosso pai Oceano, compondo um coro sagrado para as Ninfas; quer por acaso, nas cabeceiras do Nilo, despejeis de suas águas com jarros de ouro, ou habiteis o lago Meótis ou o rochedo nevoso do Mimante. Recebei o sacrifício, atendei à prece, contentes com as cerimônias sagradas.”
Em sua invocação, Sócrates menciona os quatro cantos do globo: o Olimpo da Tessália, ponto culminante da península grega e que representa o norte; Oceano, o oeste; as cabeceiras do Nilo simbolizam o sul e o lago Meótis (hoje mar de Azov) e o Mimante (promontório da Ásia Menor), o leste. Da deificação das Nuvens, resulta a necessidade de dar-lhes uma ascendência divina, então são invocadas como filhas de Oceano.
As Nuvens (personificadas através do Coro) respondem de modo pomposo, com trovões, mas Estrepsíades reage de um modo que mescla inocência e deboche. Sócrates explica que “são as Nuvens celestes, deusas grandiosas dos homens ociosos. São elas que nos proporcionam pensamento, argumentação e entendimento, narrativas mirabolantes e circunlóquios e a arte de impressionar e de fascinar.” Dentre os conhecimentos, ele inclui também que as nuvens sustentam “artistas da medicina”. Isso porque particularmente Hipócrates de Cós (469-399 a.C.), contemporâneo de Sócrates e que visitava Atenas com frequência, em suas obras, admitia as influências dos ventos e das Nuvens sobre a saúde e também as relações da astronomia com a arte de curar.
Sócrates e Estrepsíades travam vários diálogos onde o filósofo tenta convencê-lo de alguns argumentos, como sobre ver padrões regulares em nuvens (pareidolia). O filósofo também argumenta sobre somente as nuvens serem deuses. Como exemplo, ele pergunta se já viu Zeus fazer chover ou trovejar sem as Nuvens. Estrepsíades acreditava que era urina de Zeus, mas Sócrates explica como:
“Elas é que trovejam, quando são roladas (…) Quando se enchem de muita água e são obrigadas a mover-se, cheias de chuva, forçosamente, ficam dependuradas para baixo, e, a seguir, pesadas, caem umas sobre as outras, arrebentam e estrondeiam. (..) Nas Panatenéias [festival ateniense], quando você se encheu de caldo, depois nunca ficou com o ventre desarranjado? E, de repente, um reboliço não o fez crepitar? (…) Bem, pense bem como você peidou por causa desse ventrezinho tão pequenino … E este ar, incomensurável, não é razoável que troveje intensamente?”
Por se tratar de uma comédia, é de se esperar várias tiradas com bom humor, rendendo risadas ao longo de toda a peça. Veja o que Sócrates diz sobre os raios:
“Quando um vento seco, alçado nos ares, fica preso nas Nuvens, lá de dentro fá-las inchar como uma bexiga, e depois, arrebenta-as à força e se precipita para fora, cheio de ímpeto por causa da densidade. Em vista do ruído e da velocidade, ele se incendeia por própria conta.”
A última frase provavelmente é uma paródia de alguma explicação dos físicos: “Quando o quente cai no frio, com o ruído, produz o trovão, e, com o peso e grandeza da luz, o raio” – Cf. Anaxágoras (Diels-Kranz II, 25, 21). Sobre o início do movimento das nuvens, Sócrates afirma que Zeus não existe, que isso é tarefa do Turbilhão. A história não deixa claro o que seria, mas poderia ser um redemoinho – assim como nas histórias do Oriente Médio.
Sócrates continua conversando com Estrepsíades e as Nuvens: “Não é verdade que você, agora, não aceitará nenhum outro deus a não ser os nossos, o Caos, as Nuvens e a Língua, só estes três?” Como Estrepsíades revela-se um “bronco e totalmente ignorante”, as nuvens aconselham-no que “se você tem um filho já criado, mande-o aprender no seu lugar.”
Os perigos do sofisma
Para o treinamento de Fidípeds, “da casa de Sócrates saem em duas gaiolas, como dois galos de briga: o Raciocínio Justo [representa o conhecimento tradicional] e o Raciocínio Injusto [representa o sofismo]. Ambos ameaçam atracar-se”. Aristófanes não vê com bons olhos os novos pensamentos sofistas.
A palavra sofisma, que se origina do grego, significa “fazer raciocínios capciosos”. Em filosofia, é um raciocínio ou falácia em que se faz uma refutação aparente mediante os quais se quer defender algo falso e confundir o contraditor. Por sua vez, falácia é algo aparentemente lógico mas que não existe, utilizando algum argumento inválido. Alguns exemplos de falácias podem ser vistos no post Combatendo mitos.
Em sentido bastante genérico, dialética é um método de diálogo cujo foco é a contraposição e contradição de ideias que levam a outras ideias. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) compilou 38 estratagemas dialéticos em seu livro inconcluso “Dialética Erística” – no Brasil, pode ser encontrado como o livro “Como vencer um debate sem precisar ter razão”, com introdução, notas e comentários de Olavo de Carvalho. Muitos desses estratagemas estão relacionados a falácias que podem ser aplicadas durante uma discussão com o objetivo de vencê-la independente de se chegar a uma verdade.
Na peça, as nuvens são a representação dessas novas ideias sofistas que, para Aristófanes, são impiedosas. Pode-se fazer uma analogia entre as formas passageiras e absurdas que as nuvens adquirem durante sua passagem no céu e as ideias criticadas. Como a busca pela verdade não é o foco da discussão, a ausência de conteúdo e a individualidade característica da dialética socrática não são compatíveis com as ciências objetivas ao mesmo tempo em que grosso modo, pode ser facilmente confundido com a persuasão sofista.
Estrepsíades deseja livrar-se de uma dívida contraída sem ter que pagar por ela. Faz uso de seu próprio filho para que possa atingir esse objetivo. Ele descobre que pode convencer as pessoas da existência de coisas que não existem se usar um raciocínio aparentemente lógico mas desprovido de verdade. No final, o feitiço volta contra o feiticeiro e o filho faz uso dessa artimanha para justificar que é permitido bater no próprio pai.
“É assim que sempre fazemos, quando reconhecemos que alguém é amante das más ações, até que o atiramos na desgraça para que aprenda a temer os deuses.”
Fontes
- Wikipedia – As Nuvens
- Plano crítico – Crítica: As Nuvens, de Aristófanes
- Revista Sísifo – E se Aristófanes estivesse certo?: Uma análise crítica à face caricatural de Sócrates na peça teatral “As Nuvens”
- Abstração Coletiva – As Nuvens, de Aristófanes
- Lucas R. Bello – As Nuvens – Aristófanes
- Escola de Filosofia – Aristófanes – As Nuvens