Filme Os Aeronautas: ficção e realidade

O filme britânico-estadunidense “Os Aeronautas” (The Aeronauts, 2019) é uma aventura que contém um drama biográfico. Ele é inspirado em uma pessoa real, o meteorologista, aeronauta e astrônomo inglês James Glaisher (1809-1903), e um de seus voos de balão, onde foi a “a alturas que nenhum homem ou mulher jamais alcançou antes”, lutando contra ventos fortes, frio congelante e a altitude. Do que acontece no filme, o que é fato e o que é ficção?

Um breve histórico sobre balões

Antes da invenção do balão, a atmosfera era como uma lousa em branco na qual eram projetadas fantasias e medos. Filósofos especularam que o céu continuasse para sempre, enquanto havia histórias medievais de pássaros que eram tão grandes que podiam levar passageiros humanos às nuvens. Outros a pensavam como um lugar onde permaneciam vapores causadores de doenças, e que poderiam morrer se subissem às nuvens, devido à falta de oxigênio.

O sonho de viajar para o céu tornou-se realidade em 1783, quando os irmãos franceses Joseph-Michel Montgolfier e Jacques-Étienne Montgolfier lançaram o primeiro balão de ar quente pilotado. Vários aeronautas e passageiros dos primeiros voos morreram quando balões inesperadamente esvaziaram, pegaram fogo ou caíram no mar. Em parte devido a esse perigo inerente, o voo de balão se tornou uma forma de entretenimento público, emocionando multidões que queriam ver se algo daria errado.

Cena do filme "Os Aeronautas" dos personagens no cesto do balão
Cena do filme “Os Aeronautas” dos personagens no cesto do balão

Com o tempo, os aeronautas se tornaram mais qualificados, a tecnologia melhorou e as viagens se tornaram seguras o suficiente para levar os passageiros. Na época das subidas de Glaisher, custava cerca de 600 libras (cerca de 90 mil dólare hoje) para construir um balão. Os cientistas que queriam fazer uma subida solo precisavam desembolsar cerca de 50 libras para contratar um aeronauta, balão e gás suficiente para uma única viagem. Para conhecer mais sobre balões, veja o post Voando de balão.

Na época, diferentes teorias prevaleciam sobre como e por que a chuva se formou. Os cientistas debatiam o papel dos ventos alísios e a composição química da atmosfera. As pessoas se perguntavam o que causava um raio e o que aconteceria ao corpo humano quando este subisse mais alto.

Quem foi James Glaisher?

Filho de um relojoeiro de Londres, Glaisher foi assistente júnior no Observatório de Cambridge de 1833 a 1835 antes de se mudar para o Observatório Real de Greenwich, onde atuou como superintendente do Departamento de Meteorologia e Magnetismo por 34 anos. Em 1845, publicou suas tabelas de pontos de orvalho para medir a umidade. Foi membro de importantes sociedades científicas da época, inclusive como membro fundador da British Meteorological Society, posteriormente renomeada Royal Meteorological Society. Como também foi membro da Royal Society, recebeu o título FRS: Fellowship of the Royal Society (ForMemRS and HonFRS).

Entre 1862 e 1866, geralmente com Henry Tracey Coxwell como co-piloto, Glaisher fez 28 subidas para medir a temperatura e a umidade da atmosfera em seus níveis mais altos. Sua ascensão em 5 de setembro de 1862 quebrou o recorde mundial de altitude, mas ele desmaiou cerca de 8.800 metros (28.900 pés) antes que uma leitura pudesse ser feita. Estimativas sugerem que ele subiu para mais de 9.500 metros (31.200 pés) e até 10.900 metros (35.800 pés) acima do nível do mar.

Nesse voo recorde de 1862, Coxwell e Glaisher decolaram de Wolverhampton com uma variedade de instrumentos, algumas garrafas de conhaque e seis pombos, que foram lançados em várias altitudes para ver o quão bem eles voaram. Mais de cinco quilômetros eles “caíram como uma pedra”.

Ele também foi um dos pioneiros na área de previsão do tempo. Entre suas descobertas, está o fato de o vento mudar de velocidade em diferentes altitudes e a forma como as gotas de chuva se formam e coletam mais umidade. Coletou valores de temperatura, umidade, pressão e composição química em diferentes níveis, permitindo montar um perfil de comportamento das variáveis atmosféricas. Com seus trabalhos, foi possível novos trabalhos sobre a relação entre altitude e temperatura; a formação de chuva, granizo e neve (ele chegou a fazer vários desenhos de flocos de neve).

Caminho do balão em sua ascensão de Wolverhampton a Cold Weston, perto de Ludlow. 5 de setembro de 1862. Fonte: "Travels in the Air" (1871)
Caminho do balão em sua ascensão de Wolverhampton a Cold Weston, perto de Ludlow. 5 de setembro de 1862. Fonte: “Travels in the Air” (1871)

Glaisher morava em 20 Dartmouth Hill, Londres (próximo ao Observatório de Greenwich), onde há uma placa azul em sua memória. Uma cratera lunar recebe o nome dele em 1935.

O filme e o que realmente aconteceu

Em uma de suas definições, “aeronauta” é o piloto de um aeróstato (aeronave mais leve que o ar). Quem pilotava o balão a gás no filme era Amelia Rennes, uma mulher que simbolizava ser livre e estar à frente do seu tempo. Essa personagem nunca existiu no mundo real, mas foi inspirada em mulheres que existiam no mundo aeronáutico. O nome Amelia é em parte uma homenagem a Amelia Earhart, primeira mulher a voar sozinha sobre o Oceano Atlântico. E o sobrenome Wren é um aceno para o avô de Tom Harper (diretor e escritor do filme), que sempre corria para fora da casa da família para verificar o clima e as formações de nuvens.

A personagem de Wren também foi inspirada em Margaret Graham, a primeira britânica a fazer um vôo solo de balão, e na aeronauta Sophie Blanchard, cujo marido, o balonista francês Jean-Pierre-François Blanchard, morreu de ferimentos sofridos quando caiu do balão após sofrer um ataque cardíaco em 1809. As semelhanças entre Wren e Blanchard são claras: ambos usaram fogos de artifício para fazer exibições deslumbrantes e cães de paraquedas nos balões.

A substituição por uma personagem feminina também introduziu uma série de anacronismos, que tiram um pouco a atenção do cinéfilo que conhece um pouco dos costumes desse período histórico. Um melodrama entre os protagonistas parece forçado. Além disso, os flashbacks constantes acabam quebrando a ação. No entanto, existe uma valorização da investigação científica realizada ao longo do experimento pela pilota.

Realmente existiu um voo recorde em 5 de setembro de 1862 que quase terminou em desastre quando o balão subiu incontrolavelmente e seus ocupantes, Henry Coxwell e o meteorologista James Glaisher, começaram a desmaiar. Suas vidas foram salvas apenas quando, sete milhas acima do nível do mar e a -29°C, Coxwell subiu no cordame para liberar uma válvula presa.

Keith Moore, diretor de biblioteca da Royal Society, disse: “É uma pena que Henry não seja retratado porque ele teve um desempenho muito bom e salvou a vida de um cientista de renome.” Um entusiasta de balão ao longo da vida, Coxwell fazia parte de um grupo de aeronáuticos pioneiros dedicados a ultrapassar os limites do voo mais leve que o ar.

Glaisher escreveu sobre essa expedição e outras em seu livro de 1871, “Travels in the Air“, que está disponível gratuitamente no link:

“Entramos em uma nuvem … Momentaneamente, as nuvens se tornaram mais claras e emergiram delas … uma inundação de luz solar forte explodiu sobre nós com um lindo céu azul sem nuvens. uma nuvem, e debaixo de nós havia um magnífico mar de nuvens.”

Os tipos de medições científicas que ele realizou usando termômetros, barômetros e higrômetros atualmente são feitos de modo automático em balões meteorológicos não tripulados. Inclusive, no filme aparece um psicrômetro (outro instrumento para medir umidade do ar) bem curioso, que precisa ser girado para fazer com que a água do termômetro de bulbo seco evapore e diminua sua temperatura – uma relação entre as temperaturas dos termômetros de bulbo seco e bulbo úmido, é possível calcular a umidade relativa do ar.

Algo que já se conhecia na época é que, quanto maior a altitude, mais rarefeito fica o ar. Assim, o oxigênio começa a ficar em baixa concentração a ponto de afetar o funcionamento cerebral. Com isso, a pessoa fica sujeita a desmaios e alucinação. Isso acontece no filme, quando estão nas maiores altitudes.

Em grandes altitudes, o vento corre mais rápido devido à ausência de atrito com o relevo e o solo. No filme, é comentado sobre uma pesquisa que cogitava a hipótese de que insetos pudessem ser levados a longas distâncias quando atingissem uma corrente dessas. Isso é apresentado através das borboletas. É uma menção aos futuros estudos das correntes de jato da alta atmosfera – veja mais no post Balão bomba e correntes de jato.

E falando em vento, logo no início da jornada eles dão de cara com uma Cumulonimbus: a famosa nuvem de tempestade severa. Não existem relatos de que tenham sido feitas ascensões de balões próximas a uma tempestade dessas, devido ao extremo perigo. No entanto, o filme fez uso de uma passagem na beirada interna de uma nuvem dessas para mostrar um pouco de seu poder e : fortes correntes ascendentes e descendentes, chuva forte, raios e trovões. Existem casos de pessoas que caíram ou foram sugadas para o interior de nuvens assim, mas a maioria não sobreviveu. O relato de um dos sobreviventes está no post Saltou em uma Cb e olha no que deu.

Cena do filme "Os Aeronautas" com o envelope do balão congelado
Cena do filme “Os Aeronautas” com o envelope do balão congelado

O filme conta com paisagens belíssimas de nuvens, do céu estrelado mesmo durante o dia, neve caindo (às vezes na mesma velocidade que o balão), formação de orvalho e de geada sobre as superfícies, dentre outros fenômenos. Um dos mais bonitos é a ocorrência do halo ao redor da sombra do balão projetada na nuvem. Parece um arco-íris, pois é formado devido à refração da luz branca do Sol em diferentes cores, mas por se formar junto à sombra é designado de outra forma. Na Meteorologia, esse fenômeno é mais conhecido como Glória ou Espectro de Broken, sendo Halo o nome dado ao fenômeno quando ocorre ao redor do Sol ou da Lua. Veja mais sobre esses e outros belos fenômenos atmosféricos no post do link.

Fontes

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