Criando histórias

As histórias podem estar em livros, filmes, jogos e nas mais variadas mídias e formatos, mas, de modo geral, seguem um mesmo padrão. Além da forma da escrita em si (introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho), muitos estudiosos de “storytelling” (capacidade de contar histórias relevantes) afirmam que boa parte delas segue uma mesma estrutura. Afirmam que, analisando qualquer história contada, é possível encaixá-la em um modelo que muitos conhecem como “Jornada do Herói”.

É comum as pessoas, principalmente crianças, gostarem de ouvir a mesma história várias vezes. Ao identificar, mesmo que inconscientemente, sucessões de fatos e suas relações de causa e efeito, é possível fazer previsões e criar expectativas, além de trazer segurança sobre fatos futuros do enredo.

O enredo, também chamado de trama, é uma sucessão de ações executadas ou a serem executadas pelas personagens numa ficção, a fim de criar sentido ou emoção no espectador. Ele geralmente é formado de:

  1. Situação inicial – personagens, espaço e contexto são apresentados
  2. Quebra da Situação Inicial – um acontecimento modifica a situação apresentada
  3. Conflito – surge uma situação a ser resolvida, que quebra a estabilidade de personagens e acontecimentos
  4. Clímax – ponto de maior tensão na narrativa
  5. Desfecho – solução do conflito (nem sempre um final feliz)

O argumento é a ideia trabalhada sobre a qual se desenvolverá uma sequência de atos e acontecimentos que constituirão, futuramente, um roteiro. Assim, o roteiro (em inglês script) é a forma escrita de qualquer espetáculo audiovisual, um guia de atividades.

Jornada do Herói

O antropólogo norte americano Joseph Campbell fez um estudo aprofundado de histórias pertencentes a diferentes culturas. O resultado foi o livro “O Herói de Mil Faces” (1949), em que defende que todas as histórias são uma só: um herói que passa pelas mesmas etapas até chegar ao fim de sua jornada. Esse conceito é conhecido como monomito, mas geralmente é chamado de “Jornada do Herói”.

A ideia de monomito é explicada por meio de uma mescla entre o conceito junguiano de arquétipos, forças inconscientes da concepção freudiana, e a estruturação dos ritos de passagem por Arnold van Gennep. Em sua obra original, está dividida em Partida (contendo o chamado à aventura), Iniciação (aventuras) e Retorno (conclusão). Veja essa relação em 12 passos da Jornada do Herói:

  1. Mundo Comum – descrição do cotidiano do herói antes da história começar
  2. O Chamado da Aventura – apresentação de um problema ao herói, que pode ser um desafio ou uma aventura
  3. Reticência do Herói ou Recusa do Chamado – o herói recusa ou demora a aceitar o desafio/aventura, geralmente porque tem medo
  4. Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural – o herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado, trazendo informações e realizando treinamento para sua aventura.
  5. Cruzamento do Primeiro Portal – abandono do mundo comum para entrar no novo mundo
  6. Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia – enfrentamento de testes, encontra aliados e inimigos, de forma que aprende as regras do novo mundo
  7. Aproximação – o herói tem êxitos durante as provações
  8. Provação difícil ou traumática – aparece a maior crise da aventura, geralmente uma questão de vida ou morte
  9. Recompensa – vence o medo e agora ganha uma recompensa (o “elixir”)
  10. O Caminho de Volta – o herói deve voltar para o mundo comum
  11. Ressurreição do Herói – outro teste aparece, no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo que foi aprendido
  12. Regresso com o Elixir – o herói finalmente volta para casa com o “elixir”, e o usa para ajudar todos no mundo comum

As histórias de Prometeu, Osíris, Buda e Jesus Cristo seguem a “Jornada do Herói” quase exatamente, enquanto outras seguem a maioria dos pontos dela. Veja essa estrutura contendo a descrição de duas histórias bem conhecidas do cinema para ilustrar como elas se assemelham:

Fonte: Bodega Online
Fonte: Papo de Autor

O amor impossível (“Romeu e Julieta”)

De certa forma, não deixa de ser uma variação da “Jornada do Herói”. O destaque aqui vai para o desafio ao herói e para a heroína, onde cada um vive sua jornada frente ao desafio de uma paixão avassaladora entre ambos.

Esse tipo de estrutura aparece em praticamente todas as novelas, desde as mexicanas até as brasileiras. É uma receita de sucesso em que a rede Globo e outras emissoras apostam para preencher sua grade de programação e agradar ao público.

E falando de novela e clichês, note que quase toda vez que uma mulher fica com enjoos ou vômito em uma novela é porque ela está grávida e que o “bonzinho” sempre conta o plano do que vai fazer para o bandido antes de fazer.

Teste de Bechdel-Wallace

Na tentativa de criar novos pontos de discussão no enredo e chamar um público maior, muitos autores apostam em utilizar mais personagens femininos, homossexuais, negros e etnias. No entanto, é comum ver mulheres encenando estereótipos sexualizados e negros ou homossexuais como alívio cômico (outro estereótipo).

Para verificar o preconceito de gênero, o teste de Bechdel questiona se as personagens femininas possuem relevância para a história. O nome remete à cartunista norte-americana Alison Bechdel. Em 1985, uma personagem de seus quadrinhos “Dykes to Watch Out For” expressou a ideia, que a autora atribuiu a sua amiga Liz Wallace. Nele, uma personagem feminina diz que ela só assiste a um filme se ele satisfizer os seguintes requisitos:

  1. Deve ter pelo menos duas mulheres
  2. Elas conversam uma com a outra
  3. Sobre alguma coisa que não seja um homem

Note que muitas obras contemporâneas falham no teste. Existem vários exemplos de filmes que passam e que não passam no teste e uma discussão mais aprofundada no post do Momentum Saga.

O mesmo teste pode ser utilizado considerando negros, homossexuais ou qualquer outro grupo. Ainda poderia ser incluído no teste que o personagem não deve ser exclusiva ou predominantemente definido pela sua orientação sexual e que deve estar vinculado na trama de tal forma que sua remoção teria um efeito significativo.

O que não fazer em um filme de terror/suspense

Ao ver um filme de terror ou suspense, existem situações que já sabemos que não vai dar coisa boa. Veja algumas coisas que não se deve fazer:

  1. Não comprar casas mal assombradas ou que foram construídas em cima de algum cemitério indígena
  2. Se você não tem experiência e preparo para lidar com um assassino, não saia à procura dele: fuja!
  3. Não invente histórias de terror em noites escuras e sombrias, principalmente se podem virar verdade
  4. Pra que fazer aquela brincadeira estranha de chamar os espíritos ou jogar aquele jogo antigo esquecido e empoeirado no fundo do armário? Vai jogar buraco, 21 …
  5. Evite entrar no sótão ou porão, principalmente no escuro
  6. Não siga nem responda às vozes que te chamam do nada
  7. Telefone sem linha? Televisão no chuvisco? Desligue!
  8. Não leia em voz alta o que está escrito em um idioma perdido que você não entenda (principalmente latim e hieróglifos egípcios ou se estiver escrito em sangue)
  9. Não durma com o pé para fora da cama
  10. Ouça os cientistas, entanda as regras
  11. Não se separe
  12. Não durma em um lugar perigoso
  13. Não abra túmulos
  14. Sempre cheque o banco de trás antes de entrar no carro
  15. Não faça mal aos animais, seja em terra ou no mar
  16. Não compre bonecos assustadores, principalmente os grandes
  17. Não compre coisas estranhas de pessoas estranhas
  18. Nunca largue sua arma
  19. Sempre fique perto do sobrevivente (o herói)

Mais lugares comuns de filmes de terror estão no link “Deslivros: Como criar um filme de terror” e no Nerdcast 517 – Monstros do Cinema (depois de 1:25:30).

Reportagens

Até no jornalismo, é comum recorrer a narrativas para descrever crimes e criar emoção ao contar um fato que, a princípio, deveria ser imparcial e racional. Nas reportagens sobre turismo, existem tantos “lugares comuns” que você pode fazer um bingo e marcar pelo menos uma dessas expressões:

  • apertem os cintos e vamos lá!
  • pé na estrada
  • lagoa de águas cristalinas
  • visual de tirar o fôlego
  • natureza deslumbrante
  • é muita adrenalina!
  • sentir a força da natureza
  • dizem que essa comidinha típica é afrodisíaca

Super-heróis e políticos

Os primeiros homens procuraram explicar o mundo a partir das divindades. Assim, foram criados os deuses, misturando o bem e o mal, super-poderes e imortalidade. Nas religiões antigas, incluindo a cristã, é comum o maniqueísmo: filosofia que prega uma divisão simples entre o bom e o mau, sem meio-termo. Essa é uma visão simplista da realidade, cuja grande maioria de eventos possui graduações e interpretações relativas desses conceitos.

Além do maniqueísmo, outro elemento vindo das religiões é o messianismo: a crença na vinda (ou retorno) de um enviado divino libertador, com poderes e atribuições que aplicará ao cumprimento da causa de um povo. O super-herói tem características sobrenaturais, acima de um ser humano comum, e atua no bem estar do povo com o qual se identifica. É um pressuposto que ele seja dotado de valores considerados virtuosos por esse grupo.

Os deuses e os super-heróis são uma personificação do maniqueísmo e do messianismo, além de possuir grande poder. Pode ser interessante dentro de uma narrativa ficcional, mas perigosa se trazida para o mundo real. Políticos podem fazer uso disso como se fosse um “enviado dos céus” para governar o povo.

Um super-herói ou um líder por vezes divide as questões a serem resolvidas de uma maneira atraente simples. Isso é comum porque o gasto energético e o esforço cognitivo de analisar um problema são grandes e o ser humano prefere respostas diretas. Quando ele traz uma resposta simples para um problema complexo, o conforto cognitivo que isso traz é tentador, atraindo muitas pessoas para apoiá-lo. Veja mais no post sobre o livro “Pensando rápido e devagar“.

Para um político que se posiciona como herói, a oposição é sempre a ameaça à população e, portanto, o bandido deve ser, à maneira do criminoso da narrativa trivial, derrotado. Dependendo do grupo ao qual ele discursa, os inimigos podem ser sindicalistas ou empresários, por exemplo. Seu poder pode fazer muitas coisas, o que pode incluir decisões pessoais que afetem negativamente muitas pessoas, mas também pode gerar problemas para outros grupos ou outros tempos. Problemas da concentração de poder nas mãos de poucos. Ou mesmo de uma pessoa só, todos são seres humanos, sujeitos a falhas. Como diria tio Ben, “um grande poder traz grandes responsabilidades”.

Veja mais sobre o tema no artigo Do herói ficcional ao herói político e no texto A figura do herói e as narrativas na política.

Teorias conspiratórias

Essa é uma outra forma de criar histórias, que muitas vezes pode alterar seriamente a forma de muitas pessoas verem o mundo. Teoria da conspiração é uma hipótese que visa explicar algum fato sugerindo que uma organização tem conspirado para acobertar, de modo deliberado e secreto, esse evento geralmente ilegal ou prejudicial. Uma característica comum das teorias conspiratórias é que elas evoluem para integrar provas contra si mesmas, de modo que se tornem não falseáveis, ou seja, torna-se uma questão de fé em vez de prova.

Têm origens principalmente psicológicas (projeção, necessidade particular de tentar explicar um evento com uma causa significativa ou até mesmo diferentes estágios de transtornos de pensamento) e sócio-políticas (insegurança ao se deparar com eventos aleatórios e imprevisíveis ou até mesmo inexplicáveis).

A partir de 10:30, o Pirulla descreve os seguintes passos para criar uma teoria da conspiração:

  1. Pegar um fato que tenha sido muito comentado recentemente ou alguma ideia que seja muito bem estabelecida pela Ciência;
  2. Inventar uma forma de como isso pode ser uma mentira e que todo mundo está sendo enganado (por quem? não importa, pode ser governo, alienígenas, sociedades secretas, etc). Deve ser alguma coisa que seja difícil das pessoas verificarem (informações difícies de se obter ou de interpretar);
  3. Pinçar, dentro da realidade, fatos que corroboram com essa sua ideia, desconsiderando os que desmentem o que você pensou. Isso é conhecido como “pick and choose”. O que foi desconsiderado, pode ser ignorado ou criar uma outra teoria da conspiração para dizer que aquilo é mentira ou estão tentando te enganar com coisas falsas;
  4. Criar um documentário tosco, uma página no Facebook, um canal no YouTube… para espalhar essa ideia mirabolante que você teve – diga que você é o único detentor da realidade, que está aí para abrir os olhos da população;
  5. Dizer que a Ciência não sabe de nada. Não pode confiar nos cientistas, na mídia, em nada, só no autor da teoria – a não ser que o que eles digam seja a favor da teoria;
  6. Depois de “achincalhar” os cientistas e autoridades políticas, pegar uma meia dúzia de cientistas e autoridades que, supostamente, há muito tempo, já confirmavam essa teoria

De modo geral, o convencimento envolve uma profunda ignorância da pessoa no tema e uma vontade intrínseca do ouvinte de que isso seja verdade.

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3 comments

  1. Muito bom! =)

    Vale a pena lembrar que usar essa fórmula (da jornada do herói) não garante que a história vai ser boa, mas já é um caminho a seguir.

    Outra coisa, mas aí é minha opinião, depois que começaram a perceber esse padrão nas histórias, algumas pessoas tendem a enxergar a jornada em tudo. Faço um paralelo com o número de ouro. Todo mundo enxerga nas abelhas, no abacaxi etc.

    Pegar uma história ‘X’ e dizer que está escrita de acordo com a jornada do herói, mas de outra forma, com alguns elementos em outra ordem, pra mim, já não se configura como jornada do herói.

    Acho que é isso.

    abs,

    1. Pois é, eu só não comentei isso porque ultimamente estou procurando histórias que fujam dessa fórmula. Quando começa o filme já dá pra saber como termina, só um ou outro detalhe que foge. Não que o autor realmente fale “ah vou seguir essa fórmula que é sucesso” mas já tá tão enraizado na cultura esse tipo de história que fica difícil fugir. Por isso tem esse pessoal do tênis verde que vai ver cinema iraniano 😛 rsrs

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