O conhecimento do estado e dos fenômenos da atmosfera é fundamental para a aviação, com destaque ao voo a vela. Já houve uma menção à atividade na entrevista do professor Rubens Junqueira Villela, mas aqui serão apresentados alguns tópicos da Meteorologia de grande importância nessa área com base no livro “Voo a vela”, do premiado piloto Henrique Navarro. Veja mais sobre outros Esportes radicais nas alturas clicando no link.
O voo a vela é também conhecido como voo sem motor ou voo planado. Como o planador não possui motor, a maneira mais comum dele deixar o solo e ganhar altitude é através de seu lançamento com reboque aéreo: um avião reboca o planador usando uma longa corda; o piloto do planador controla um mecanismo de desengate de ação rápida localizado no nariz do planador e solta a corda quando estiver na altitude desejada. Outro método popular de lançamento é por guincho: um motor aciona um grande guincho no solo, ligado a outro mecanismo de desengate localizado na parte inferior do planador por um longo cabo; quando o guincho é acionado, o planador é puxado pelo solo na direção do guincho e decola, subindo rapidamente.
Dentre as modalidades de voo, estão:
- Térmicas – a mais comum e utilizada pelas grandes aves (como urubus, águias e gaviões), faz uso das correntes ascendentes de origem convectiva para incrementar ou manter sua altitude;
- Voo de colina – o piloto (ou ave) utiliza o vento que vai de encontro a uma colina (barlavento), subindo e elevando consigo o planador – a sotavento, o vento é descendente;
- Onda estacionária – semelhantes aos ventos de colina no que se refere à formação quando o vento bate em uma montanha, mas formam-se por ventos que passam sobre a montanha em vez de soprarem do lado; presente em altitudes muito elevadas, nas quais se podem atingir distâncias realmente grandes;
- Voo dinâmico – executada por certas aves marinhas (como o albatroz), aproveita o diferencial de energia criado pela zona de atrito entre diferentes massas de ar.
Embora não recomendado (e até proibido em competições), o voo em nuvem pode ocorrer. Em um ambiente sem visibilidade, deve-se confiar completamente nos insturmentos. Uma técnica usando o mínimo de instrumentos é a tríade “barbantinho-velocímetro-bússola” – sim, um barbante pendurado, indicando a vertical por gravidade. Basicamente, são contados quantos segundos demora para a marcação da bússola dar uma volta, mantendo a velocidade e barbante fixos. Qualquer segundo de variação, deve-se corrigir a inclinação e a velocidade, com manche levemente na diagonal.
As térmicas são formadas devido ao aquecimento de uma porção da superfície, que aquece uma parcela de ar logo acima e sobe por estar mais leve que o ar ao redor. Normalmente, as térmicas tendem a se acelerar dentro das nuvens, pois durante o processo de condensação há liberação de calor latente (devido à condensação de vapor d’água). Esse calor adicional contribui para retardar o resfriamento e acelerar a corrente ascendente no interior da nuvem, assim como aumentar a sua força pouco abaixo da base. No entanto existem térmicas, relacionadas a nuvens mais achatadas e com menos desenvolvimento vertical, que são freadas e ficam fracas um pouco antes da base das nuvens.
Em um dia “normal” de voo com planador, cerca de 1/10 do céu tem correntes ascendetes – o resto é de descendentes e de intensidade mais fraca. Assim, a navegação deve não só buscar essas porções ascedentes mas também minimizar o caminho entre elas. Cerca de 1/4 do céu tem nuvens, mas várias delas não tem mais uma térmica ativa embaixo. Uma térmica ocupa 1/3 da área da nuvem, o que exige acertar sua localização para não passar apenas de lado. E nem sempre uma posśivel fonte formadora de térmica na superfície está diretamente associada à nuvem, já que movimentações de ar em sentidos aleatórios podem ocorrer no trajeto de subida da parcela.
Solos e cobertura de superfície diferentes apresente condução de calor diferentes entre si. Isso resulta em tempos diferenciados para desprendimento das térmicas, conhecidos como tempo morto. Por exemplo, sobre solos fofos e secos, o tmepo morto fica entre 5 e 20 minutos, enquanto que sobre áreas de concreto pode ser de 1 a 2 horas. Já com uma nuvem, geralmente formada por mais de uma fonte térmica, tem um tempo de duração de cerca de 20 minutos. Sabendo disso, pode-se estimar qual o tempo máximo que deve-se esperar em cima da superfície até que a térmica esteja formada.
O início do processo convectivo ocorre quando a massa de ar atinge a temperatura de início de convecção e as primeiras térmicas, represadas por uma camada de inversão (por exemplo) sobem. Essas térmicas podem ser recicladas durante o dia, geralmente de quatro formas:
- 1ª reciclada – após a primeira térmica do dia subir, cerca de meia hora depois uma parcela de ar frio que estava em altitude substitui a parcela de ar quente que havia subido, havendo um período de calmaria até que o ar aqueça novamente e suba;
- 2ª reciclada – quando o sol atinge um certo ângulo sobre as nuvens (geralmente entre 12h e 14h), elas acabam por sombrear a própria fonte térmica que as gerou, quebrando a atividade térmica por cerca de meia hora;
- 3ª reciclada – após o horário mais quente do dia (por volta de 14-15h), a atividade convectiva desascelera um pouco, podendo causar uma curta reciclada;
- 4ª reciclada – antes do final do período térmico, quando as fontes térmicas começam a minguar, ainda existe a chance de um ou dois últimos ciclos térmicos.
As térmicas estão espaçadas entre si mais ou menos três vezes a altura da base das nuvens – ou seja, quanto maior a altura da base de nuvens, maior o espaçamento. Por exemplo, com base entre 600 e 1200 metros, um espaçamento é de 1,5 vezes; já com base entre 1800 e 3000 metros, esse índice aumenta para algo entre 5 e 10 vezes. Assim, considerando nuvens com base a 3 mil metros de altura, outra térmica só deve surgir em uma distância de 15 a 30 km.
Com relação ao enfraquecimento da térmica, o mais comum é que ocorra quase como um castelo de cartas que cai. Isso porque, uma vez exaurida a fonte geradora da térmica no solo, a coluna começa a se desfazer com rapidez – pela perda da força “inercial”, atrito, etc. Também pode acontecer o cisalhamento dela por conta do vento, deslocando a posição da térmica em alguns metros para o lado.
A porção descendente de ar das camadas superiores é conhecida como subsidência. Isso ocorre pelo peso do próprio ar (mais denso) ou pela circulação atmosférica (sistemas de alta pressão). Ele causa compressão e aquecimento das camadas inferiores, deixando a atmosfera estável e inibindo a formação de térmicas. A velocidade desse movimento é em torno de 0,2 m/s, sendo que vórtices de cisalhamento e de relevo podem contribuir com a subsidência.
Depois de encerrados seus ciclos convectivos, as nuvens se dissipam muito lentamente – ou nem isso. Geralmente nuvens nessas condições ficam com fiapos laterais e uma cor menos esbranquiçada (mais “suja”). Se existir uma camada de inversão térmica ou de isotermia, a dissipação ocorre mais lateralmente. Fractocumulus são esfiapadas por ventos irregulares, não por sua dissipação.
A inversão térmica (temperatura do ar aumentando conforme se sobe), quando ocorre a uma altura de voo, podem ter grande intensidade quando causadas por massas de ar com grandes diferenças de temperatura – e de densidade. Assim, elas não se misturam (como água e óleo). Nessas situações, o vento se torna mais forte e turbulento com a altura, cisalhando as poucas térmicas que comecem a nascer.
Por outro lado, redemoinhos são um sinal de que a atmosfera está instável – um bom sinal de que uma térmica está nascendo ali. Sua formação ocorre em um ambiente com forte gradiente vertical de temperatura, o que leva a parcela de ar a subir rapidamente. Assim, ela pode ganhar rotação e até levar consigo a poeira do solo de 30 até 100 ou 300 metros de altura. É como se fosse um minitornado, só que se forma de baixo para cima, em vez de cima para baixo – e muito turbulentos quando em baixa altura.
É interessante verificar a união de vários desses conceitos em uma única região. A divisa entre os estados da Bahia e de Tocantins está bem demarcada pelo relevo, como na região da cidade baiana de Luís Edurado Magalhões. A Bahia está sobre um platô 400 metros mais alto e que acaba abruptamente, definindo a divisa. Essa diferença brusca no relevo provoca fenômenos como:
- Falsas “térmicas do vale” – algumas térmicas “do vale” (Tocantins) nascem no platô (Bahia) quando o ar quente é levado por ventos de leste de 20-30 km/h. Ao encontrar a borda do platô, ocorre uma perda de “tensão superficial” da parcela de ar e há um diferencial de temperatura, promovendo o desenvolvimento vertical de nuvens que atingem sua maturidade no vale.
- Convergência – mesmo estando a temperatura do solo igual nos dois estados, na altitude do platô a temperatura sobre Tocantins deve estar menor pela distância com a superfície. Essa diferença de temperatura gera um vento de oeste, que pode convergir com a circulação predominante de leste e auxiliar na formação de térmicas. Depois do meio dia, o sol começa a iluminar mais diretamente o paredão que separa os estados, intensificando o fenômeno.
- Superfícies irregulares – o terreno é muito mais rugoso e menos homogêneo, em termos de albedo, no Tocantins do que na Bahia, o que promove um desprendimento mais fácil das térmicas. Assim, existe uma tendência das térmicas serem mais fortes (mas em menor quantidade) na Bahia, o que é propício para o voo tipo dente de serra (subindo e descendo com o planador); no Tocantins, há uma maior quantidade de térmicas (porém mais fracas), sendo mais favorável voos de longo planeio, com manutenção de altura.
- Fortes térmicas promovem desvio do vento – com vento abaixo de 15 km/h, as térmicas tendem a se desprender da superfície ao vencer a tensão superficial por acúmulo de ar quente. Acima dessa velocidade, o vento pode cisalhar as térmicas, além de resfriar o solo, e desfavorecer seu desenvolvimento; no entanto, se as térmicas forem fortes, elas formam colunas que forçam o vento a se desviar.
Um diagrama termodinâmico permite compreender melhor as características da atmosfera do dia, baseado em uma sondagem efetuada pela manhã. Veja algumas informações que eles podem trazer para as atividades do dia:
- Horário de início das térmicas – a temperatura de início de convecção (“trigger temperature” – Tompkins, 2019) ocorre é a temperatura necessária para se romper a camada superficial de inversão térmica, ou para se atingir uma altura que permita o voo de navegação (cerca de 800 metro de altura). Ela é obtida traçando uma isopleta de umidade da razão de mistura da superfície para a curva de temperatura ambiente e então seguindo a adiabática seca de volta à pressão da superfície. Observando-se a previsão de temperaturas, obtém-se o horário aproximado de início das térmicas;
- Altura da base das nuvens convectivas e sua variação no decorrer do dia – o nível de condensação convectiva é a altura onde o ar saturado condensa e forma a base das nuvens cumuliformes. Ele é obtido traçando-se uma reta ascendente paralela à linha de razão de mistura saturada a partir da temperatura de ponto de orvalho em superfície, então o nível está onde essa linha encontrar a curva de temperatura. Seguindo pela linha que representa a térmica, se ela interceptar primeiro a linha de temperatura ambiente, não haverá nuves, mas se tocar primeiro linha de razão de mistura saturada a partir da temperatura de ponto de orvalho de superfície, então haverá nuvem;
- Cobertura de nuvens convectivas – uma tabela da WMO fornece uma relação entre duas variáveis: delta (diferença entre temperatura do ar e do ponto de orvalho no mesmo nível) e o valor esperado de cobertura de nuvens (Tabela 1);
- Força das térmicas – a partir da altura da base das nuvens, umidade em superfície e instabilidade da massa de ar, pode-se calcular a velocidade média resultante do planador e quantos quilômetros (ou quanto tempo) deve-se voar. Basicamente, quanto mais alto as térmicas chegam, quanto maior a umidade e quanto mais instável, maior a razão de subida;
- Faixa ótima de altura em voo – ficar o maior tempo possível na faixa de altura com atmosfera instável;
- Riscos – inversões térmicas de altitude freiam o desenvolvimento vertical e, havendo umidade suficiente, a nuvem não vai dissipar (podendo até crescer horizontalmente) e causar sombreamento em superfície, reduzindo ainda mais as térmicas. O mesmo vale para camadas grossas de nuvens cirriformes. Com relação a nuvens superdesenvolvidas, existem os índices de instabilidades, calculados a partir do diagrama.
Tabela 1 – Cobertura de nuvens esperada conforme temperatura do ar e do ponto de orvalho
Delta (°C) | Cobertura de nuvens | METAR |
---|---|---|
0 | 8/8 | OVC – encoberto |
0,6 | 7/8 | BKN – nublado |
1,3 | 6/8 | BKN – nublado |
2 | 5/8 | BKN – nublado |
3 | 4/8 | SCT – esparso |
4 | 3/8 | SCT – esparso |
5 | 2/8 | FEW – pouco |
7 | 1/8 | FEW – pouco |
>7 | sem nuvens | SCK – céu claro |
A evaporação é uma função da temperatura, convecção, umidade, vento e tipo de superfície, sendo um bom indicador da energia disponível na atmosfera para convecção.