Meteorologia no voo a vela

O conhecimento do estado e dos fenômenos da atmosfera é fundamental para a aviação, com destaque ao voo a vela. Já houve uma menção à atividade na entrevista do professor Rubens Junqueira Villela, mas aqui serão apresentados alguns tópicos da Meteorologia de grande importância nessa área com base no livro “Voo a vela”, do premiado piloto Henrique Navarro. Veja mais sobre outros Esportes radicais nas alturas clicando no link.

Vista a partir do cokpit de um planador sobre o sul da Nova Zelândia. Fonte: Flickr/Trey Ratcliff
Vista a partir do cokpit de um planador sobre o sul da Nova Zelândia. Fonte: Flickr/Trey Ratcliff

O voo a vela é também conhecido como voo sem motor ou voo planado. Como o planador não possui motor, a maneira mais comum dele deixar o solo e ganhar altitude é através de seu lançamento com reboque aéreo: um avião reboca o planador usando uma longa corda; o piloto do planador controla um mecanismo de desengate de ação rápida localizado no nariz do planador e solta a corda quando estiver na altitude desejada. Outro método popular de lançamento é por guincho: um motor aciona um grande guincho no solo, ligado a outro mecanismo de desengate localizado na parte inferior do planador por um longo cabo; quando o guincho é acionado, o planador é puxado pelo solo na direção do guincho e decola, subindo rapidamente.

Esquema de voo de planador em térmicas. Fonte: Portal São Francisco
Esquema de voo de planador em térmicas. Fonte: Portal São Francisco

Dentre as modalidades de voo, estão:

  • Térmicas – a mais comum e utilizada pelas grandes aves (como urubus, águias e gaviões), faz uso das correntes ascendentes de origem convectiva para incrementar ou manter sua altitude;
  • Voo de colina – o piloto (ou ave) utiliza o vento que vai de encontro a uma colina (barlavento), subindo e elevando consigo o planador – a sotavento, o vento é descendente;
  • Onda estacionária – semelhantes aos ventos de colina no que se refere à formação quando o vento bate em uma montanha, mas formam-se por ventos que passam sobre a montanha em vez de soprarem do lado; presente em altitudes muito elevadas, nas quais se podem atingir distâncias realmente grandes;
  • Voo dinâmico – executada por certas aves marinhas (como o albatroz), aproveita o diferencial de energia criado pela zona de atrito entre diferentes massas de ar.

Embora não recomendado (e até proibido em competições), o voo em nuvem pode ocorrer. Em um ambiente sem visibilidade, deve-se confiar completamente nos insturmentos. Uma técnica usando o mínimo de instrumentos é a tríade “barbantinho-velocímetro-bússola” – sim, um barbante pendurado, indicando a vertical por gravidade. Basicamente, são contados quantos segundos demora para a marcação da bússola dar uma volta, mantendo a velocidade e barbante fixos. Qualquer segundo de variação, deve-se corrigir a inclinação e a velocidade, com manche levemente na diagonal.

As térmicas são formadas devido ao aquecimento de uma porção da superfície, que aquece uma parcela de ar logo acima e sobe por estar mais leve que o ar ao redor. Normalmente, as térmicas tendem a se acelerar dentro das nuvens, pois durante o processo de condensação há liberação de calor latente (devido à condensação de vapor d’água). Esse calor adicional contribui para retardar o resfriamento e acelerar a corrente ascendente no interior da nuvem, assim como aumentar a sua força pouco abaixo da base. No entanto existem térmicas, relacionadas a nuvens mais achatadas e com menos desenvolvimento vertical, que são freadas e ficam fracas um pouco antes da base das nuvens.

Em um dia “normal” de voo com planador, cerca de 1/10 do céu tem correntes ascendetes – o resto é de descendentes e de intensidade mais fraca. Assim, a navegação deve não só buscar essas porções ascedentes mas também minimizar o caminho entre elas. Cerca de 1/4 do céu tem nuvens, mas várias delas não tem mais uma térmica ativa embaixo. Uma térmica ocupa 1/3 da área da nuvem, o que exige acertar sua localização para não passar apenas de lado. E nem sempre uma posśivel fonte formadora de térmica na superfície está diretamente associada à nuvem, já que movimentações de ar em sentidos aleatórios podem ocorrer no trajeto de subida da parcela.

Térmicas pulsantes. Fonte: Navarro, H. Voo a Vela
Térmicas pulsantes. Fonte: Navarro, H. Voo a Vela

Solos e cobertura de superfície diferentes apresente condução de calor diferentes entre si. Isso resulta em tempos diferenciados para desprendimento das térmicas, conhecidos como tempo morto. Por exemplo, sobre solos fofos e secos, o tmepo morto fica entre 5 e 20 minutos, enquanto que sobre áreas de concreto pode ser de 1 a 2 horas. Já com uma nuvem, geralmente formada por mais de uma fonte térmica, tem um tempo de duração de cerca de 20 minutos. Sabendo disso, pode-se estimar qual o tempo máximo que deve-se esperar em cima da superfície até que a térmica esteja formada.

O início do processo convectivo ocorre quando a massa de ar atinge a temperatura de início de convecção e as primeiras térmicas, represadas por uma camada de inversão (por exemplo) sobem. Essas térmicas podem ser recicladas durante o dia, geralmente de quatro formas:

  • 1ª reciclada – após a primeira térmica do dia subir, cerca de meia hora depois uma parcela de ar frio que estava em altitude substitui a parcela de ar quente que havia subido, havendo um período de calmaria até que o ar aqueça novamente e suba;
  • 2ª reciclada – quando o sol atinge um certo ângulo sobre as nuvens (geralmente entre 12h e 14h), elas acabam por sombrear a própria fonte térmica que as gerou, quebrando a atividade térmica por cerca de meia hora;
  • 3ª reciclada – após o horário mais quente do dia (por volta de 14-15h), a atividade convectiva desascelera um pouco, podendo causar uma curta reciclada;
  • 4ª reciclada – antes do final do período térmico, quando as fontes térmicas começam a minguar, ainda existe a chance de um ou dois últimos ciclos térmicos.

As térmicas estão espaçadas entre si mais ou menos três vezes a altura da base das nuvens – ou seja, quanto maior a altura da base de nuvens, maior o espaçamento. Por exemplo, com base entre 600 e 1200 metros, um espaçamento é de 1,5 vezes; já com base entre 1800 e 3000 metros, esse índice aumenta para algo entre 5 e 10 vezes. Assim, considerando nuvens com base a 3 mil metros de altura, outra térmica só deve surgir em uma distância de 15 a 30 km.

Distribuição de ascendentes mapeadas embaixo de uma camada de nuvens sem desenvolvimento vertical (esquerda) e de uma cumulus média (direita). Fonte: Navarro, H. Voo a Vela
Distribuição de ascendentes mapeadas embaixo de uma camada de nuvens sem desenvolvimento vertical (esquerda) e de uma cumulus média (direita). Fonte: Navarro, H. Voo a Vela

Com relação ao enfraquecimento da térmica, o mais comum é que ocorra quase como um castelo de cartas que cai. Isso porque, uma vez exaurida a fonte geradora da térmica no solo, a coluna começa a se desfazer com rapidez – pela perda da força “inercial”, atrito, etc. Também pode acontecer o cisalhamento dela por conta do vento, deslocando a posição da térmica em alguns metros para o lado.

A porção descendente de ar das camadas superiores é conhecida como subsidência. Isso ocorre pelo peso do próprio ar (mais denso) ou pela circulação atmosférica (sistemas de alta pressão). Ele causa compressão e aquecimento das camadas inferiores, deixando a atmosfera estável e inibindo a formação de térmicas. A velocidade desse movimento é em torno de 0,2 m/s, sendo que vórtices de cisalhamento e de relevo podem contribuir com a subsidência.

Depois de encerrados seus ciclos convectivos, as nuvens se dissipam muito lentamente – ou nem isso. Geralmente nuvens nessas condições ficam com fiapos laterais e uma cor menos esbranquiçada (mais “suja”). Se existir uma camada de inversão térmica ou de isotermia, a dissipação ocorre mais lateralmente. Fractocumulus são esfiapadas por ventos irregulares, não por sua dissipação.

A inversão térmica (temperatura do ar aumentando conforme se sobe), quando ocorre a uma altura de voo, podem ter grande intensidade quando causadas por massas de ar com grandes diferenças de temperatura – e de densidade. Assim, elas não se misturam (como água e óleo). Nessas situações, o vento se torna mais forte e turbulento com a altura, cisalhando as poucas térmicas que comecem a nascer.

Por outro lado, redemoinhos são um sinal de que a atmosfera está instável – um bom sinal de que uma térmica está nascendo ali. Sua formação ocorre em um ambiente com forte gradiente vertical de temperatura, o que leva a parcela de ar a subir rapidamente. Assim, ela pode ganhar rotação e até levar consigo a poeira do solo de 30 até 100 ou 300 metros de altura. É como se fosse um minitornado, só que se forma de baixo para cima, em vez de cima para baixo – e muito turbulentos quando em baixa altura.

Divisa entre Tocantins (esquerda) e Bahia (direita, platô). Fonte: Google Earth
Divisa entre Tocantins (esquerda) e Bahia (direita, platô). Fonte: Google Earth

É interessante verificar a união de vários desses conceitos em uma única região. A divisa entre os estados da Bahia e de Tocantins está bem demarcada pelo relevo, como na região da cidade baiana de Luís Edurado Magalhões. A Bahia está sobre um platô 400 metros mais alto e que acaba abruptamente, definindo a divisa. Essa diferença brusca no relevo provoca fenômenos como:

  • Falsas “térmicas do vale” – algumas térmicas “do vale” (Tocantins) nascem no platô (Bahia) quando o ar quente é levado por ventos de leste de 20-30 km/h. Ao encontrar a borda do platô, ocorre uma perda de “tensão superficial” da parcela de ar e há um diferencial de temperatura, promovendo o desenvolvimento vertical de nuvens que atingem sua maturidade no vale.
  • Convergência – mesmo estando a temperatura do solo igual nos dois estados, na altitude do platô a temperatura sobre Tocantins deve estar menor pela distância com a superfície. Essa diferença de temperatura gera um vento de oeste, que pode convergir com a circulação predominante de leste e auxiliar na formação de térmicas. Depois do meio dia, o sol começa a iluminar mais diretamente o paredão que separa os estados, intensificando o fenômeno.
  • Superfícies irregulares – o terreno é muito mais rugoso e menos homogêneo, em termos de albedo, no Tocantins do que na Bahia, o que promove um desprendimento mais fácil das térmicas. Assim, existe uma tendência das térmicas serem mais fortes (mas em menor quantidade) na Bahia, o que é propício para o voo tipo dente de serra (subindo e descendo com o planador); no Tocantins, há uma maior quantidade de térmicas (porém mais fracas), sendo mais favorável voos de longo planeio, com manutenção de altura.
  • Fortes térmicas promovem desvio do vento – com vento abaixo de 15 km/h, as térmicas tendem a se desprender da superfície ao vencer a tensão superficial por acúmulo de ar quente. Acima dessa velocidade, o vento pode cisalhar as térmicas, além de resfriar o solo, e desfavorecer seu desenvolvimento; no entanto, se as térmicas forem fortes, elas formam colunas que forçam o vento a se desviar.
Evolução dos gradientes verticais de temperatura durante o dia. Fonte: Navarro, H. Voo a Vela
Evolução dos gradientes verticais de temperatura durante o dia. Fonte: Navarro, H. Voo a Vela

Um diagrama termodinâmico permite compreender melhor as características da atmosfera do dia, baseado em uma sondagem efetuada pela manhã. Veja algumas informações que eles podem trazer para as atividades do dia:

  • Horário de início das térmicas – a temperatura de início de convecção (“trigger temperature” – Tompkins, 2019) ocorre é a temperatura necessária para se romper a camada superficial de inversão térmica, ou para se atingir uma altura que permita o voo de navegação (cerca de 800 metro de altura). Ela é obtida traçando uma isopleta de umidade da razão de mistura da superfície para a curva de temperatura ambiente e então seguindo a adiabática seca de volta à pressão da superfície. Observando-se a previsão de temperaturas, obtém-se o horário aproximado de início das térmicas;
  • Altura da base das nuvens convectivas e sua variação no decorrer do dia – o nível de condensação convectiva é a altura onde o ar saturado condensa e forma a base das nuvens cumuliformes. Ele é obtido traçando-se uma reta ascendente paralela à linha de razão de mistura saturada a partir da temperatura de ponto de orvalho em superfície, então o nível está onde essa linha encontrar a curva de temperatura. Seguindo pela linha que representa a térmica, se ela interceptar primeiro a linha de temperatura ambiente, não haverá nuves, mas se tocar primeiro linha de razão de mistura saturada a partir da temperatura de ponto de orvalho de superfície, então haverá nuvem;
  • Cobertura de nuvens convectivas – uma tabela da WMO fornece uma relação entre duas variáveis: delta (diferença entre temperatura do ar e do ponto de orvalho no mesmo nível) e o valor esperado de cobertura de nuvens (Tabela 1);
  • Força das térmicas – a partir da altura da base das nuvens, umidade em superfície e instabilidade da massa de ar, pode-se calcular a velocidade média resultante do planador e quantos quilômetros (ou quanto tempo) deve-se voar. Basicamente, quanto mais alto as térmicas chegam, quanto maior a umidade e quanto mais instável, maior a razão de subida;
  • Faixa ótima de altura em voo – ficar o maior tempo possível na faixa de altura com atmosfera instável;
  • Riscos – inversões térmicas de altitude freiam o desenvolvimento vertical e, havendo umidade suficiente, a nuvem não vai dissipar (podendo até crescer horizontalmente) e causar sombreamento em superfície, reduzindo ainda mais as térmicas. O mesmo vale para camadas grossas de nuvens cirriformes. Com relação a nuvens superdesenvolvidas, existem os índices de instabilidades, calculados a partir do diagrama.

Tabela 1 – Cobertura de nuvens esperada conforme temperatura do ar e do ponto de orvalho

Delta (°C)Cobertura de nuvensMETAR
08/8OVC – encoberto
0,67/8BKN – nublado
1,36/8BKN – nublado
25/8BKN – nublado
34/8SCT – esparso
43/8SCT – esparso
52/8FEW – pouco
71/8FEW – pouco
>7sem nuvensSCK – céu claro

A evaporação é uma função da temperatura, convecção, umidade, vento e tipo de superfície, sendo um bom indicador da energia disponível na atmosfera para convecção.

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