Juventude e a maioridade penal

Por Paulo Roberto Roggério

“Sonho com um mundo em que as crianças tenham direito à inocência; os adolescentes, à educação; os jovens, aos sonhos; os adultos, a uma vida plena e os mais velhos, a uma vida digna”.

Com esta reflexão em mente, produto da observação de quem trilhou boa parte de sua vida analisando os fenômenos que, entre o início e o fim de uma vida, marcam individual e indelevelmente o curso da existência, não pode passar despercebida a discussão que se trava, ora no Poder Legislativo, sobre o desejo de alterar dispositivo de lei que reduz a maioridade penal de dezoito para dezesseis anos, com o objetivo de tornar imputável, ou responsável por atos delituosos, como se adultos fossem, os jovens a partir de dezesseis anos, e não a partir de dezoito, como hoje.

A discussão não é nova: há quase vinte anos, recebi pedido de apoio do autor de um projeto de lei, para que endossasse e divulgasse seu projeto, o qual, na visão do autor, contribuiria para a redução da criminalidade, posto que permitiria a cominação, aos jovens, das mesmas penas a que um adulto, que cometesse o mesmo delito, estivesse sujeito.

A lógica, sob este prisma, aparenta irrefutável, e é o mesmo fio condutor que ora leva nossos representantes no Congresso Nacional a conferir regime de urgência a este projeto de lei.

Seguramente, as dúvidas que cercam a possibilidade de ser aprovada proposta legislativa deste jaez chama à consciência tantos quantos tenham responsabilidade por nossos destinos, sejam os de natureza política, e especialmente, sejam os de índole social: os membros do Poder Público: Executivo, Legislativo e Judiciário, os membros do Ministério Público e todos os profissionais que atuam nesta área sensível: professores, psicólogos, educadores, advogados, assistentes sociais, enfim, todos aqueles com responsabilidade pela Educação de nossas crianças, adolescentes e jovens e, por essa razão, diretamente responsáveis pela formação dos adultos do futuro.

Aristóteles, em sua Ética a Nicômano, afirmou que a sabedoria é uma virtude que não é dada aos jovens, pois devem eles, antes, passar pelas experiências da vida, onde, e aqui as palavras não são textuais, devemos cada um de nós experimentar os sucessos prósperos e adversos da vida, para, das lições aprendidas, desenvolvermos nossa própria sabedoria.

Entendi, nesta vereda da existência, que a sabedoria a que se refere Aristóteles é de uma certa natureza. Há outra sabedoria a considerar, e ainda a sapiência.

Aprendi que algumas crianças, jovens e adolescentes, independente da intensidade das experiências da vida, até então de trajeto tão curto percorrido, possuem uma espécie de sabedoria que não depende das experiências da vida. É uma sabedoria que é dada por Deus, assim devendo ser reconhecido por qualquer pessoa, independente da religião que professe e de suas crenças pessoais, ou de sua formação acadêmica pessoal. Podemos reconhecer uma pessoa com sabedoria, independente da idade.

Há, também, a sapiência, a qualidade de sábio, qualidade essa que, tendo a mesma natureza da sabedoria inata, dela difere por sua essência, sua amplitude e extensão, e sua influência na vida dos outros. Seria, em palavras simples, e que não têm a intenção de definir a sapiência, como um grau mais elevado da sabedoria humana, mas também como dádiva de Deus.

Só então é possível compreender o terceiro tipo de sabedoria, aquela à qual se referiu Aristóteles: a sabedoria adquirida durante a vida. Um amigo a quem muito admirei, o Professor Goffredo da Silva Telles Júnior, definiu esta sabedoria como: “o patrimônio da consciência, que vai sendo adquirido no lento fluir da existência”.

Estes pensamentos assaltam a consciência quando os debates sobre a redução da maioridade penal, de dezoito para dezesseis anos, avançam celeremente, traduzindo a possibilidade de se concretizar em breve período de tempo.

Colocam-se, então, como princípios opostos: as funções do Estado, aqui considerado como a soma de todos os nossos interesses individuais, ou seja, o Estado – Sociedade, que deve prover as necessidades da sociedade que o instituiu, ou seja, tudo aquilo que os cidadãos, individualmente, não o podem prover, como a segurança pública, e assim também a educação e a saúde, a previdência social, a assistência social e a criação e manutenção de um Estado justo, conceito mais amplo que Estado de Direito.

O Poder Público é um só, mas exercido em forma tripartite. O Legislativo cria o arcabouço jurídico pelo qual devem se guiar a nação e os cidadãos; o Executivo administra o país e o Judiciário dá a correta interpretação de cada lei, além de julgar os conflitos individuais ou coletivos. Assim, cabe ao Poder Público sopesar a dinâmica dos interesses do Estado, regrar e julgar o que o Estado, por seus representantes, decidiu ser norma de conduta para todos.

O conceito de maioridade, que constitui evento da evolução da vida desde o nascimento, e toda a evolução da vida de cada um, tem explicação mais comum de matiz biológica: é o crescimento da pessoa e a marcha dos anos, que a faz passar pela infância, adolescência, juventude, idade adulta, idade madura e velhice. Passa então, pela chamada escola da vida, onde adquire aquela terceira espécie de sabedoria antes referida.

Se esta sabedoria, concedida naturalmente por Deus, através da escola da vida, é um processo de aprendizado, como qualquer disciplina em uma escola formal, é dizer: é como uma das matérias nas quais devemos nos formar na escola da vida, além de outras, é natural que todos nós, que somos o Estado, com proeminência para nossos representantes e responsáveis pelo Poder Público: Executivo, Legislativo e Judiciário, devemos zelar pelo desenvolvimento da vida, como alma da sociedade, em todas as suas fases, considerando sempre as características inerentes a cada uma das etapas.

Por razões como estas, as leis que tratam da maioridade, ou capacidade para praticar certos atos, estipulam critérios para considerar, em média, as pessoas como aptas para praticar certos atos, e para ser responsabilizadas pelos efeitos e consequências de seus atos.

A maioridade civil, por exemplo, ou a plena capacidade para praticar atos da vida civil: como contrair matrimônio e estabelecer comércio, era alcançada aos vinte e um anos durante a vigência do Código Civil de 1916, e de dezoito anos a partir da vigência do Código Civil de 2002. A maioridade para exercer o direito de voto foi alterada, de dezoito para dezesseis anos, enquanto a lei eleitoral estabelece alguns requisitos análogos à maioridade para concorrer a certos cargos: para a presidência da República, por exemplo, o cidadão nato deve ter mais de trinta e cinco anos.

Estes exemplos refletem, nas leis que regem a maioridade, tanto a evolução biológica atingida pelo indivíduo, como, emprestando o conceito de sabedoria, à capacidade adquirida de discernir, claramente, sobre a natureza e os efeitos dos seus atos.

Neste ponto, consideremos a maioridade penal, estabelecida em dezoito anos, até o momento. Esta é a idade em que o legislador considera o jovem, recém saído da adolescência, como apto a fazer escolhas entre o bem e o mal, e de ter consciência dos resultados de seus atos.

Aos maiores de dezoito anos, é desnecessário avaliar a aplicação das leis do direito penal e do direito processual penal. A previsão é de igual tratamento para todos. Para as crianças, adolescentes e jovens nossos legisladores e representantes os consideram inimputáveis, isto é, não se lhes podem aplicar as mesmas penas que para os adultos, nem confiná-los aos mesmos locais de reeducação: os presídios, para que sejam recuperados para a sociedade.

Aos menores de dezoito anos não foi reservada a impunidade, nem se pode atribuir esta intenção aos legisladores, julgadores e administradores públicos. Considerado o nível de compreensão da vida que cada adolescente ou jovem adquiriu, na ocorrência de certos delitos são aplicadas penas, desde as medidas socioeducativas, para os delitos de menor potencial ofensivo, ou a internação em estabelecimentos correcionais, para reeducar o adolescente ou jovem infrator.

Devemos abstrair, para os fins desta reflexão, se os estabelecimentos prisionais destinados a recuperar adultos cumprem cabalmente esta finalidade, ou não. O certo é que a existência de penas e a internação de quem infringiu a lei serve para reeducá-los e reconduzi-los para a vida em sociedade. Este deve ser sempre o princípio, de dupla gênese: punir o infrator pelo mal cometido a outrem ou contra a sociedade, e recuperá-lo.

Não pode existir pena infinita, nem se deve punir por punir. A punição por detenção, reclusão ou restrição de direitos correspondia às palmadas (desculpem-me se estou sendo politicamente incorreto), que o pai aplicava ao filho para que este entendesse que errou. A sociedade criou o Poder Público também para ministrar a Justiça, e a Justiça, neste ponto em particular, tem o objetivo de recuperar o indivíduo que violou certas normas de conduta.

Esta concepção do sistema atende, razoavelmente, a necessidade e a adequação da aplicação de penas a adultos e a jovens, conforme a possibilidade média de compreensão de cada um. Porém, uma deturpação foi perpetrada, no início e na maior parte das vezes, por adultos que, planejando praticar crimes, e para fugir ao peso da lei, faziam com que a parte final do crime fosse executada por jovens. Para isso, escolhiam aqueles que, já com alguma formação física, pudessem realizá-lo: por isso a maior incidência de jovens escolhidos tem entre 16 e 18 anos, e com isso, pudessem os adultos se eximir da responsabilidade direta sobre o delito, ou crime, cometido.

O jovem, confessando, ou sendo obrigado a assumir a autoria de crimes, sabe que sua punição não ultrapassa os dezoito anos de idade, prazo no qual deve deixar a unidade correcional. O adulto fica livre, se não lhe for atribuída a prática do crime pela qual o jovem é condenado.

As mudanças verificadas na sociedade, especialmente na área de comunicações, e mais recentemente com a acelerada expansão das telecomunicações, fazem o jovem receber informações em quantidade superior à de todas as gerações que o precederam. Mas isso, necessariamente, não o capacita a compreender melhor os fenômenos da vida. Em outras palavras: o excesso de informações não transmuta o jovem em adulto.

Neste quadro, a sociedade nota a sequência de atos delituosos praticados por jovens que não atingiram dezoito anos, delitos esses praticados por iniciativa própria ou por comando de adultos, e julgam que, se lhes se aplicassem as mesmas penas reservadas aos adultos, então a criminalidade diminuiria.

Esta constatação assume contornos mais sérios e mais graves quando o crime cometido ou assumido pelo jovem causa grande comoção pública, nos casos em que a hediondez do ato é tão acentuada que causa a revolta popular. Mas esta reação ocorre também quando crimes são cometidos por adultos.

O que por cautela e por prudência devem todos avaliar, e aceitar, apesar das convicções pessoais, é que a emoção do momento e o clamor público nem sempre são bons conselheiros. Em casos extremos, a população, em reação de massa, segue a máxima da Lei de Lynch (ou linchamento), e pede punição imediata, sem ter a certeza, somente aferível após inquérito policial ou julgamento por juiz, ou tribunal do júri, de que o indiciado ou suspeito é realmente culpado.

É bem verdade que alguns jovens não são movidos por ordens de adultos que os mandam executar certos crimes, sendo estes de iniciativa própria.

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Nas hipóteses que tratam de delitos praticados por jovens a mando de adultos, há uma lógica que parece irrefutável: tão logo for aprovada a lei que torna os jovens entre 16 e 18 anos maiores para os fins da lei penal, os adultos aliciarão jovens com menos de 16 anos de idade. Serão os adolescentes os próximos da lista.

Só esta preocupação, aliada à constatação de que a população compreendida entre 16 e 18 anos não é tão grande assim, já seria suficiente para nos fazer refletir, e especialmente os nossos representantes no Congresso Nacional, a também refletir sobre a conveniência ou não de modificar o limite de idade para a maioridade penal.

Há uma falha matemática que deve ser corrigida, independente de o projeto de lei ser aprovado ou não: quando o menor, entre 16 e 18 anos, é apreendido (ou detido), afirma ser “de menor”, pois sabe que não permanecerá em cadeia pública, irá para estabelecimento correcional, e de lá sairá aos dezoito anos, independente da gravidade do ato e do tempo que resta para completar dezoito anos.

Esta falha contraria o princípio esplendidamente descrito por Beccaria: as penas devem ser proporcionais aos delitos.

Ora, um jovem prestes a completar 18 anos, se cometer um delito, permanecerá poucos dias em estabelecimento de internação. Outro, de 16 anos, ficará 2 anos.

Para tornar o sistema mais justo, seria necessário adaptar o período de correção, fazendo com que as medidas socioeducativas e correcionais sejam proporcionais ao delito. Ou seja, pena proporcional ao delito.

Evidente que esta pena não pode ser cumprida pelo jovem, então adulto após os dezoito anos, em estabelecimento destinado a adolescentes e jovens, e nem em presídios comuns. É necessário criar outro mecanismo intermediário, uma espécie de purgatório, para permitir um período de pena mais educativo: o adolescente ou o jovem cumprirá uma parte da pena em medidas socioeducativas e correcionais em ambiente próprio, até os 18 anos, e mais um período adicional, proporcional ao delito, em um novo ambiente, próprio para a idade.

Só assim será possível punir adequadamente o jovem que tenha alguma compreensão, ainda que imperfeita, dos atos que pratica, e desestimular os adultos a procurar jovens e adolescentes para “terceirizar” seus crimes.

Com isso, evitamos que os nossos adolescentes, com menos de dezesseis anos, sejam as próximas vítimas tanto dos criminosos, quanto da intolerância de alguns setores da sociedade.

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