por Maria Auxiliadora Roggério
Ano 61.000.003 antes de Cristo, quinta-feira: “Hoje, eu, o mais velho dos anciãos, estou com…(setenta e dois anos – diz alguém) com setenta e dois anos. Eu já vivi muito e presenciei muitas maravilhas; mas agora estou velho, estou lento e me levanto dezesseis vezes no meio da noite. Eu não posso mais acompanhar o rebanho; eu me arrasto atrás, atraindo os predadores, pondo em perigo meu povo e atrasando o grupo em tudo. Não ajam como se não tivessem notado! Por isso eu desejo ser arremessado do penhasco mais alto para um poço de piche. (aplausos) Mas, antes de eu ir, decreto que, a partir deste dia, todo dinossauro ao completar a idade…é…qual é mesmo a idade? Oh! 72 anos, será arremessado para um poço de piche. E esse dia será conhecido como “O dia do Arremesso” e essa tradição deverá permanecer sagrada e solene. Cada dinossauro será arremessado por um parente”. “É…com licença: (interrompe um outro ancião) Para que não haja desperdício total, pode acrescentar que os dinossauros poderão arremessar as suas sogras?” “Claro, por que não? (conclui o primeiro ancião).”
Esse é o diálogo inicial do episódio “O dia do arremesso”, do seriado Família Dinossauros, exibido há algumas décadas na televisão. No episódio, vovó Zilda, mãe de Fran, às vésperas de completar 72 anos e ser arremessada no piche por Dino, seu genro e desafeto, é convencida por Bob, o neto, a não aceitar esse destino. Bob argumenta com a mãe que, não é porque o arremesso acontece há um milhão de anos que, na atualidade (deles) com todo o progresso e conquistas, isso deva se perpetuar. Pergunta à mãe se “não acha que jogar a vovó no penhasco seria um desperdício de uma boa velhinha?” Fran, então, questiona Dino: “Já que somos domesticados agora, não há nada que nos obrigue a arremessar a mamãe, há?” e “Há coisas que podemos aprender com ela. O modo como tratamos os velhos pode estar errado. Talvez seja melhor ficarmos com eles do que os jogarmos”. “É apenas para o resto da vida dela. Quanto tempo pode durar isso?” Ao que Dino responde: “Como eu vou saber? Ninguém nunca morreu de velho antes!”
Pelo menos, não até 1º de janeiro de 2022. É que nessa data entrará em vigor a nova edição da CID-11, na qual o termo “velhice” foi incluído. Apesar de essa edição ter sido aprovada em maio de 2019, só mais recentemente os profissionais de saúde constataram a inclusão do termo, com o código MG2A. O fato que chamou a atenção foi a morte do príncipe Phillip em abril de 2021, aos 99 anos. Embora ele tenha passado por cirurgia cardíaca semanas antes de sua morte, seu atestado de óbito registrou “velhice” como causa mortis.
A inclusão do termo está provocando debates, pois a velhice, uma fase natural da vida, não pode ser considerada uma doença, sob a pena de se considerar as demais fases evolutivas também como doenças; então teríamos óbitos atestados como morte por infância, morte por adolescência…
Alguns processos de adoecimento que podem, eventualmente, ocorrerem na terceira idade, já se encontram codificados na CID-10, incluídos no diagnóstico para senilidade.
O processo natural de envelhecimento, a senescência, compreende alterações graduais decorrentes de processos fisiológicos e que não são considerados doenças, como o surgimento de cabelos brancos, de rugas, perda de massa muscular, etc.
A senilidade está inserida na senescência. Senilidade é uma condição que pode comprometer funcionalmente alguns indivíduos, prejudicando a qualidade de vida. Essa condição surge em decorrência de interferência ambiental, de certos medicamentos e hábitos e de doenças crônicas, como diabetes, cardiopatias, hipertensão, doenças pulmonares, renais, etc.
É preciso diferenciar ambos os processos. Por exemplo, alguns esquecimentos, lapsos de memória podem ocorrer em qualquer idade, por variados fatores e, com a idade avançada, poderão ser considerados parte da senescência. Porém, alterações de memória nessa fase, que prejudiquem funcionalmente o indivíduo, podem caracterizar doenças como o Alzheimer, e fazem parte do quadro de senilidade.
Mas, quais as implicações do uso do termo “velhice” na prática? No Brasil, todos seremos doentes a partir dos 60 anos? É uma verdadeira contradição que a OMS tenha estabelecido a Década do Envelhecimento Saudável (de 2020 a 2030) pretendendo acabar com a discriminação e preconceitos contra os idosos e possa permitir a inclusão do termo na CID, gerando interpretações desse tipo.
Se for considerada doença, a velhice deverá ser prevenida e tratada, o que movimentará ainda mais a indústria antienvelhecimento, gerando maiores lucros para a indústria farmacêutica, a grupos econômicos e a planos de saúde. Estes últimos poderão deixar de tratar alguma enfermidade e simplesmente diagnosticarem o doente como velho e, assim, nada haverá a ser feito? E os milhares de doentes crônicos com osteoporose, os diabéticos, hipertensos, cardíacos, etc.? Passarão a ser considerados apenas “doentes de velhice”, após os 60 anos?
Por trás da “morte por velhice”, talvez estejam estudos sobre os custos da saúde com velhos doentes e efeitos na economia que os indivíduos em envelhecimento poderão causar. O simples fato de existir depois dos 60 anos pode ser considerado um problema, um fardo? Seria um desperdício investir na “manutenção dos velhos”, gastando recursos de assistência social que poderiam ser melhor aproveitados às novas gerações?
Será que devemos nos sentir culpados por envelhecer e por não morrermos cedo o suficiente?
Fica a mensagem da banda inglesa Pulp: “Help the aged / cause one day you’ll be older too / you might need someone who can pull you through”. (“Ajude os idosos / porque um dia você vai ficar velho também / você pode precisar de alguém que possa ajudá-lo”) Help the aged, do álbum This is Hardcore, de 1998.
Veja mais em “Velhice negativada e negação da velhice”.