O Homem que Calculava

O livro “O Homem que calculava” (1948) narra os casos e proezas matemáticas do calculista persa Beremiz Samir, na Bagdá do mundo islâmico medieval. O protagonista desvenda vários problemas matemáticos e de lógica, quebra-cabeças e fala curiosidades matemáticas de uma maneira muito didática. Além disso, apresenta muitos aspectos da cultura islâmica e uma forte tonalidade moralista. [Ainda nesse post, aprenda jogar campo minado e qual é a função da esfinge.]

Foto de Malba Tahan vestido no estilo árabe (arquivo pessoal).

Malba Tahan, o autor do livro, na verdade é um heterônimo (ao contrário de pseudônimos, os heterônimos constituem uma personalidade) do professor Júlio César de Mello e Souza (1895-1974). É famoso no Brasil e no exterior por seus livros de recreação matemática e fábulas e lendas passadas no Oriente. Dentre suas obras mais famosas também estão Maktub, Mil Histórias Sem Fim, Matemática Divertida e Curiosa, Lendas do Deserto, etc.

[parágrafo cheio de spoilers] A história é narrada por Hank Tade-Maiá, que encontra Beremiz em uma viagem de Samarra a Bagdá, personagem esse que se revela ser um fabuloso calculista da Pérsia. Em Bagdá, Beremiz rapidamente torna-se famoso e muito requisitado tanto por pessoas comuns quanto por nobres, despertando a simpatia de uns e a inveja de outros. Consegue o emprego de secretário do Grão-vizir Ibrahim Maluf, enquanto que Tade-Maiá fica como escriba deste mesmo ministro. Beremiz aceita também a tarefa de ensinar a matemática à filha do poeta Iezid, Telassim. Para testar definitivamente a capacidade de Beremiz, o califa prepara, então, uma audiência onde o calculista seria arguido por sete sábios. Tendo respondido brilhantemente todas as provas, Beremiz, como recompensa, pede em casamento a mão de Telassim, por quem havia se apaixonado.

Ao longo da narrativa, são apresentados ao protagonista vários problemas de matemática, como por exemplo o problema dos 21 vasos: como pagamento de um pequeno lote de carneiros, 3 muçulmanos receberam uma partida de vinho, composta de 21 vasos iguais, sendo 7 cheios, 7 meio-cheios e 7 vazios. Querem, agora, dividir os 21 vasos de modo que cada um deles receba a mesma quantidade de vinho. A solução apresentada pelo calculista foi chamar de 2 a porção de vinho de um vaso cheio e 1 a porção de vinho do vaso meio-cheio, obtendo-se as possíveis divisões:

1º) 2+2+2+1 ou 2+1+1+1+1+1
2º) 2+2+1+1+1 ou 2+2+2+1
3º) 2+2+1+1+1 ou 2+2+2+1

Veja essa animação contendo dois problemas resolvidos pelo homem que calculava (o problema dos 35 camelos e a dívida de 50 dinares):

O caso dos 35 camelos é o primeiro enigma do livro e um dos mais famosos. Nele acontece a ideia de que a metade (1/2) de um todo somado a terça parte (1/3) do todo e a um nono (1/9) desse todo seria igual ao todo, o que não é verdade: a soma dá 33 1/18 e não 35; arredondando os valores para cima, ainda sobra um camelo. Já no problema da dívida de 50 dinares, vê-se que os saldos devedores não tem relação alguma com o total da dívida. Dinar é a moeda nacional de vários países, a maioria deles árabes, ex-integrantes do extinto Império Otomano.

Outro quebra-cabeças interessante é o problema do desaparecimento de 1 dinar em uma conta de 30 dinares. Três pessoas estavam almoçando e a conta tinha dado 30 dinares, que foi paga com 10 dinares de cada. Porém foram informados que o patrão tinha se enganado e a despesa tinha sido de apenas 25 dinares, sendo devolvido 5 dinares. Cada cliente tomou 1 moeda e deixaram 2 de troco com garçom. Então um dos três levantou a seguinte questão (reescrita para ficar mais resumida):

Cada um dos clientes pagou 10 dinares e recebeu 1 dinar de volta, logo cada um pagou 9 dinares. Como estão em três, a soma paga foi de 27 dinares. Porém, somando-se esses 27 dinares ao valor dado ao garçom (2 dinares), obtém-se 29 dinares. Onde foi para o outro dinar?

"Tempo! (tic tac tic tac...)" Para quem lembra do programa "Rá Tim Bum" da TV Cultura, que tinha uma esfinge que propunha um enigma e dava tempo para o telespectador pensar. A lenda egípcia dizia que as esfinges protegiam as riquezas das tumbas dos faraós contra os saqueadores fazendo perguntas que só se fosse um verdadeiro egípcio poderia passar com vida.
“Tempo! (tic tac tic tac…)” Para quem lembra do programa “Rá Tim Bum” da TV Cultura, que tinha uma esfinge que propunha um enigma e dava tempo para o telespectador pensar. A lenda egípcia dizia que as esfinges protegiam as riquezas das tumbas dos faraós contra os saqueadores fazendo perguntas que só se fosse um verdadeiro egípcio poderia passar com vida.

Na verdade, há um engano no cálculo feito desse segundo modo. Dos 30 dinares, 25 ficaram com o dono do restaurante, 3 foram devolvidos e 2 foram dados ao garçom. Em outras palavras, dos 27 dinares (3 x 9), 25 ficaram com o dono do restaurante e 2 foram dados de gratificação ao garçom.

Segua um enigma de lógica, no qual o homem que calculava deve descobrir quais escravas tinham olhos negros ou azuis (reescrito para ficar mais resumido):

Das cinco escravas, duas têm olhos negros e três têm olhos azuis. As que têm olhos negros dizem sempre a verdade, já as que têm olhos azuis sempre mentem. As escravas foram vendadas e fazendo apenas três perguntas que somente as escravas saberiam responder, Beremiz teria de acertar a cor dos olhos das cinco escravas. Ele perguntou para a primeira escrava qual a cor de seus olhos, e ela respondeu em um dialeto chinês que ninguém entendeu. Após ordenar que as escravas só falassem em árabe, sua língua, pergunta da segunda escrava o que a primeira tinha falado, e ela responde: ‘As palavras dela foram: meus olhos são azuis’. Depois dessa resposta, Beremiz pergunta para a terceira escrava qual a cor dos olhos das primeira e segunda escravas, e ela responde: ‘A primeira tem olhos negros e a segunda tem olhos azuis’.

Veja a resposta dada por Beremiz:

– Ao formular a primeira pergunta: “Qual a cor dos teus olhos?” eu sabia que a resposta da escrava seria fatalmente a seguinte: “Os meus olhos são negros!” Com efeito, se ela tivesse os olhos negros diria a verdade, isto é, afirmaria: “Os meus olhos são negros!” Tivesse ela os olhos azuis, mentiria, e, assim, ao responder, diria também: “Os meus olhos são negros!” Logo, eu afirmo que a resposta da primeira escrava era uma única, forçada e bem determinada:
“Os meus olhos são negros!” Feita, portanto, a pergunta, esperei pela resposta, que, previamente, conhecia. A escrava, respondendo em dialeto desconhecido, auxiliou-me de modo prodigioso. Realmente, alegando não ter entendido o arrevesado idioma chinês, interroguei a segunda escrava: “Qual foi a resposta que a sua companheira acabou de proferir?” Disse-me a segunda: “As palavras foram: ‘Os meus olhos são azuis!’ “ Tal resposta vinha demonstrar que a segunda mentia, pois essa não podia ter sido, de forma alguma (como já provei), a resposta da primeira jovem. Ora, se a segunda mentia, era evidente que tinha os olhos azuis. Reparai, ó rei, nessa particularidade notável para a solução do enigma! Das cinco escravas, nesse momento, havia uma cuja incógnita estava, pois, por mim resolvida com todo o rigor matemático. Era a segunda. Havia faltado com a verdade; logo, tinha os olhos azuis. Restavam ainda a descobrir quatro incógnitas do problema.
Aproveitando a terceira e última pergunta, interpelei a escrava que se achava no centro da fila: “De que cor são os olhos das duas jovens que acabei de interrogar?” Eis a resposta que obtive: “A primeira tem os olhos negros e a segunda tem os olhos azuis!” Ora, em relação à segunda eu não tinha dúvida (conforme já expliquei). Que conclusão pude tirar, então, da terceira resposta? Muito simples. A terceira escrava não mentira, pois confirmara que a segunda tinha os olhos azuis. Se a terceira não mentira, os seus olhos eram negros e as suas palavras eram a expressão da verdade, isto é, a primeira escrava tinha, também, os olhos negros. Foi fácil concluir que as duas últimas, por exclusão (à semelhança da segunda), tinham os olhos azuis!!

Esse tipo de raciocínio lógico está presente no jogo campo minado (aquele que vem com o Windows e muita gente acha que é um jogo de sorte ou azar). O objetivo do jogo é localizar todas as minas o mais depressa possível, sem revelar nenhuma delas – se você revelar uma mina, perderá o jogo. O objetivo do Campo minado é localizar todas as minas o mais depressa possível, sem revelar nenhuma delas. Se você revelar uma mina, perderá o jogo.

Tela do jogo Campo Minado
Tela do jogo Campo Minado

Para revelar um quadrado basta clicar sobre ele. Os números que aparecem nos quadrados indicam quantas minas existem nos oito quadrados adjacentes que o cercam. Quando acreditar que um quadrado contém uma mina clique sobre ele com o botão direito do mouse, e este quadrado ficará marcado com uma bandeira; se apenas suspeitar de uma mina em um quadrado, clique duas vezes nele com o botão direito do mouse para marcá-lo com um ponto de interrogação.

Não só de matemática é feito o livro. Existem várias notas de rodapé explicando vários elementos da cultura árabe presentes no livro. Por exemplo, está escrito que “Alá é como os árabes designam o Criador (Deus)” e que “o Deus dos muçulmanos é o mesmo Deus dos cristãos”. Também vê que “califado é o conselho de ministros do rei”, “xeique é um termo de respeito que se aplica aos sábios, religiosos e pessoas respeitáveis pela idade ou posição social”, “vizir é ministro e califa é um soberano dos muçulmanos”, “Maomé é o fundador do Islamismo, a religião dos árabes”, etc.

O narrador também apresenta diversas parábolas e lições de moral muito importantes. Por exemplo:

“Aquele que olha por um vidro de cor vê todos os objetos da cor desse vidro: se o vidro é vermelho, tudo lhe parece rubro; se é amarelo, tudo se lhe apresenta completamente amarelado. A paixão está para nós como a cor do vidro para os olhos. Se alguém nos agrada, tudo lhe louvamos e desculpamos; se, ao contrário, nos aborrece, tudo lhe condenamos, ou interpretamos de modo desfavorável.”

“Era uma vez uma formiguinha que, andando a vagar pelo mundo, encontrou uma grande montanha de açúcar. Muito contente com sua descoberta, retirou da montanha um pequeno grão e levou-o ao formigueiro. – ‘Que é isto?’ – perguntaram as companheiras. – ‘Isto – replica a pretensiosa – é uma montanha de açúcar! Encontrei-a no caminho e resolvi trazê-la para aqui!’
É assim o sábio orgulhoso. Traz a pequenina migalha, apanhada no caminho, e julga conduzir o próprio Himalaia. A Ciência é uma grande montanha de açúcar; dessa montanha só conseguimos retirar insignificantes pedacinhos.”

Para aprender mais sobre a matemática e sobre a própria vida, de uma maneira lúdica e descontraída, não deixe de ler o livro “O homem que calculava”. Ele está disponível gratuitamente em PDF no site da Unilins e como audiolivro. Maiores informações no site Malba Tahan. Veja mais problemas de raciocínio lógico clicando no link.

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