Tentando entender Neuromancer

Neuromancer, de William Gibson, é um livro de ficção científica e um clássico do cyberpunk (enfoque de alta tecnologia combinada à degradação social). Publicado em 1984, introduziu conceitos revolucionários para a época, como inteligência artificial, cyberespaço, realidade virtual, implantes cibernéticos e ligações neurais entre personagens. Esses conceitos foram explorados por Masamune Shirow em seu mangá “Ghost in the Shell” e no filme de mesmo nome, dirigido por Mamoru Oshii, que por sua vez serviu de inspiração aos irmãos Wachowski na criação da trilogia Matrix.

neuromancer
Ilustração por Sourgasm

Resenha é um texto que serve para apresentar outro (texto-base), desconhecido do leitor. Desse modo, esse texto não é uma resenha, e sim uma discussão. É um livro com muitos detalhes, definições e digressões, algumas delas até desnecessárias para a história e fazendo o leitor se perder, nada é muito explicado e é preciso ler com muito foco, então merece ser estudado. Também vou fazer comparações com o filme Matrix, cuja história parece acontecer bem depois da que ocorre no livro. Se você não leu o livro e não quer “estragar a surpresa”, deixe para ler esse texto depois. Logo que termino um livro, gosto de buscar comentários que outros leitores fizeram sobre a obra, buscando acrescentar ao meu entendimento sobre a história. Esse é o intuito do que segue escrito.

A história tem início em Chiba, definida por Gibson como “sinônimo de implantes neurais e microbiônica, (…) um ímã para as subculturas tecnocriminosas do Sprawl.” Sprawl é o nome dado à megacidade composta pela junção entre todo o terreno urbano existente entre Boston e Atlanta (incluindo Nova York e Washington), nos Estados Unidos. Case é um hacker (ou cowboy, como são chamados os hackers em Neuromancer) que ficava no mundo real enquanto sua mente navega na Matrix através de uma conexão através de plugs e um deck – no filme, a Matrix é algo muito mais amplo e complexo, sendo algo que substituiu a realidade. No entanto, ele está impossibilitado de exercer sua profissão, graças a um erro que cometeu ao tentar roubar seus patrões. Foi envenenado com uma micotoxina que danificou seu sistema neural e o impossibilitou de se conectar à Matrix.

Case passa a viver de bicos, usando drogas, morando em um hotel barato e procurando meios para remover a droga de seu organismo. Certo dia, prestes a morrer pela sua busca frenética, Case é salvo por uma mercenária samurai das ruas, “com lentes no lugar de olhos e lâminas escondidas sob as unhas”, chamada Molly. Neo, do filme Matrix, está para Case assim como Molly está para Trinity. Ninja e parceira sentimental e profissional, Molly é a força feminina da história.

Molly foi contratada por um personagem misterioso, Armitage, e tem ordens de contratar Case para um serviço – depois descobre-se que Armitage (“alias” do coronel Willis Corto) é um ex-agente da Força Especial Oficial, fantoche de Wintermute e mente doente devido a um experimento. Em troca, Armitage paga um tratamento que devolve a Case a capacidade de se conectar – e, de quebra, lhe dá um novo pâncreas e reforma seu fígado, tornando-o incapaz de metabolizar cocaína e anfetaminas, encerrando seu vício. Para garantir que o hacker não o trairá, Armitage mandou colocar no organismo de Case, durante a mesma operação, saquinhos com a mesma toxina usada por seus ex-empregadores, que dissolvem lentamente; se Case concluir a missão, eles serão removidos, se não, ficará novamente incapaz de se conectar.

O Finlandês (personagem criado originalmente para Burning Chrome) é um antigo contato de Molly, um receptador que aparentemente tem acesso a todo tipo de bugiganga tecnológica. Ao longo do livro, Wintermute aparece para Case com a aparência do Finlandês, para usar sempre uma imagem familiar para o protagonista. Peter Riviera é um criminoso que possui implantes cibernéticos que o tornam capaz de projetar imagens holográficas, com um efeito semelhante a como se as pessoas que as observam estivessem tendo alucinações.

Um outro personagem mencionado é Smith, um receptador, “a primeira pessoa que o Finlandês conheceu que ‘havia virado silício’ “. O Smith é usado para ser genérico mesmo, para representar um anonimato, porque Smith é um sobrenome comum. O “virar silício” refere-se a “incrementar o corpo com tecnologia”.

As tecnologias simstim e ICE foram introduzidas no conto Burning Chrome. Simstim (simulated stimuli) grava/reproduz as sensações humanas, similar à tecnologia de Huxley em “Admirável Mundo Novo” e ao conceito central do filme “Quero Ser John Malkovich”, em que uma pessoa é capaz de sentir-se no corpo de outra ao entrar por uma porta, mas sem a capacidade de controlá-la. ICE (Intrusion Countermeasures Eletronics) são softwares corporativos contra invasões eletrônicas, o que se poderia comparar com os atuais firewalls.

Existem aplicativos tecnológicos interessantes, como o microsoft: um chip utilizado em conjunto com um implante cibernético localizado atrás da orelha com a função de conceder ao usuário novas habilidades, como permitir o usuário falar outros idiomas. No filme, o programa era “baixado” para o cérebro da pessoa utilizá-lo na Matrix. Quando aparece no texto “flipou” significa que Case entrou na Matrix.

Dixie Flatline é a memória do hacker McCoy Pauley, gravada em um disco de ROM pouco antes de sua morte, e roubada dos arquivos Sense/Net, que por sua vez é uma biblioteca de dados corporativo com arquivos de todas as personalidades importantes.

Boa parte da trama se dá em Zion. Em Neuromancer, Zion é uma cidade que fica na órbita da Terra, o que é o contraponto de sua versão em Matrix (uma cidade situada no centro da Terra, nem tão tecnológica assim). Lá estão Maelcum e Aerol, dois pilotos de nave. Existe também a cidade orbital de Freeside, quase completamente dominada pela Tessier-Ashpool SA. Essa empresa é uma multinacional coordenada por uma família que perpetua a clonagem de seus membros através de gerações; possui Wintermute, Neuromancer e Villa Straylight.

Wintermute é uma Inteligência Artificial, que premedita todas as ações dos protagonistas em busca de conseguir autonomia. É a rival da Inteligência Artificial no Rio, gêmea de Wintermute, chamada Neuromancer. Ao se meclarem, tornar-se-iam algo jamais visto, capaz de controlar toda a matrix. No filme Matrix, as Inteligências Artificiais das máquinas geraram uma revolução, declarando guerra contra os humanos.

Wintermute, então, trama um intrincado plano que requer a participação de Case, Molly, Riviera e Dixie, que devem invadir a sede da Tessier-Ashpool para, ao mesmo tempo em que crackeiam seu computador central, obrigar Lady 3Jane Marie-France Tessier-Ashpool, atual presidente da empresa e terceiro clone da Jane original, a dizer uma senha que só ela sabe, e que liberará as travas.

Com o avanço da tecnologia no mundo real, é possível traçar mais paralelos do modo de vida atual com o do livro. Por exemplo, as pessoas selecionam seus melhores momentos para compartilhar no facebook, desligando-se do “chato” mundo real (“é bem melhor viver na Matrix”). Também parte da população usa implantes e próteses cibernéticas, a fim de substituir algum membro perdido, ou para extrapolar os limites humanos – muitos já “não vivem” sem o celular. Veja essa lista de vídeos com uma discussão sobre o livro promovida pelo programa Clube do Livro da rádio Unisinos:

Trilogia de cinco histórias

Neuromancer foi escrito como livro de volume único e acabou se transformando em uma trilogia, junto com os livros “Count Zero” e “Mona Lisa Override” e os contos pré-neuromancer “Johnny Mnemonic” e “Burning Chrome”.

Johnny Mnemônico fala sobre um rapaz que aluga seu cérebro para armazenar informações sigilosas, acessíveis somente ao dono das mesmas através de uma senha vocal. Ainda aparece um golfinho ciborgue que ajuda Johnny a desbloquear algumas informações armazenadas em seu cérebro. Virou filme em 1995, estrelado por Keanu Reeves (que também fez Neo) – clique aqui para assisti-lo, enquanto o vídeo ainda estiver hospedado no youtube.

Burning Chrome introduz Flatline e também é o que melhor define o que é e como funciona a matrix, um ICE breaker, e a tecnologia simstim. É a história de dois hackers free-lance: Automatic Jack, o narrador e um especialista em hardware, e Bobby Quine, um especialista em software. Bobby se apaixona por uma garota chamada Rikki e quer tornar-se rico, a fim de impressioná-la. Jack adquiriu um poderoso programa russo “quebra-gelo”, que podem penetrar sistemas de segurança corporativa. Bobby sugere que eles o usem para invadir o sistema de um notório criminoso e cruel criminoso conhecido como Chrome, que lida com as transferências de dinheiro para o crime organizado, e Jack relutantemente concorda em ajudar. A investida é bem-sucedida, e Jack e Bobby esvaziam contas bancárias do Chrome, mas eles descobrem depois que Rikki estava trabalhando em um bordel com laços com Chrome. Ela usa seu salário para comprar um conjunto de implantes cibernéticos de olho para ela e ir para Hollywood; a notícia deixa os dois homens devastados, e ela nunca será vista novamente por eles. O conto está disponível nesse link (em inglês).

Count Zero, lançado em 1986, é ambientado sete anos após os eventos de Neuromancer. Conta três histórias paralelas:

  • o hacker Bobby Newmark é salvo da morte por uma misteriosa garota que aparentemente tem a habilidade de se conectar à matrix sem precisar de um computador;
  • o mercenário Turner, que, enquanto se recupera dos ferimentos adquiridos em uma missão, é contratado por uma corporação para outra, na qual deve encontrar um empregado desertor e recuperar um biochip que está com ele;
  • Marly Krushkhova, dona de uma galeria de arte que cai em desgraça após tentar vender uma falsificação, sem saber que a peça não era genuína, e é contratada por um milionário para descobrir quem é o responsável pela falsificação. Esse milionário, Josef Virek, é o vilão da história, e secretamente manipula os personagens das três histórias em uma busca por um biosoftware que poderá torná-lo onisciente e imortal.

Mona Lisa Overdrive, lançado em 1988, é ambientado sete anos após Count Zero. Apresenta quatro enredos entrelaçados:

  • Mona, uma garota de programa sósia da famosa personalidade do cyberespaço Angie Mitchell, é contratada para, sem ela saber, para participar de um plano que envolve o sequestro da estrela;
  • Kumiko, filha de um dos chefes da Yakuza, que conhece Molly em Londres, e acaba sendo treinada por ela;
  • Slick Henry, um artista recluso com sérios problemas de memória causados por repetidas lavagens cerebrais que sofreu quando foi condenado por roubo de automóvel, contratado para se passar pelo hacker Bobby Newmark;
  • Angie Mitchell, na verdade a garota que pode se conectar à matrix sem um computador, mas que tem essa habilidade ameaçada por drogas administradas pela corporação para a qual trabalha.

Mais uma vez essas histórias se entrelaçam, agora sob os interesses de uma misteriosa entidade que vive no cyberespaço.

Um pouco mais do filme Matrix

Matrix é uma produção cinematográfica estado-unidense e australiana de 1999 dirigido pelos irmãos Wachowski. Foi escrito como uma trilogia: Matrix, Matrix Reloaded (2002) e Matrix Revolutions (2003). Imagino o filme como uma continuação da série dos livros, já que a Matrix existe com um poder nunca antes imaginado.

A verdadeira natureza do Agente Smith do filme é deixada explícita em um easter egg no primeiro filme. Na placa do carro dele,“IS 5416″, há uma indicação para um versículo da bíblia, Ísaias 54:16:

“Veja, fui eu quem criou o ferreiro (em inglês, é Smith),
que sopra as brasas até darem chama
e forja uma arma própria para o seu fim.
E fui eu quem criou o destruidor para gerar o caos.

O Agente Smith é destruído depois que transforma Neo nele mesmo. Teoricamente, após ser pego por Smith, Neo resolve ser deletado da Matrix, levando o agente junto.

“Vou te dizer por que está aqui. Você sabe de algo. Não consegue explicar o quê. Mas você sente. Você sentiu a vida inteira: há algo errado com o mundo. Você não sabe o que, mas há. Como um zunido na sua cabeça te enlouquecendo. Foi esse sentimento que te trouxe até mim. Você sabe do que estou falando? Você deseja saber o que é a Matrix? A Matrix está em todo lugar. À nossa volta. Você pode vê-la quando olha pela janela ou quando liga sua televisão. Você a sente quando vai para o trabalho, quando vai à igreja, quando paga seus impostos. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade. Você é um escravo. Como todo mundo, você nasceu num cativeiro. Nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para sua mente. Infelizmente, é impossível dizer o que é a Matrix. Você tem de ver por si mesmo. Siga-me.”

Morpheus, no filme Matrix

O filme também é cheio de alusões: Morpheus é uma alusão ao deus do sono grego; o nome de Trinity é uma alusão a santíssima trindade e representando os três personagens principais: Morpheus (o Pai), Neo (Filho) e ela (Espírito Santo); o coelho branco que Neo vê na tatuagem de Dujour, e faz ele querer acompanhar o grupo até a festa, é uma alusão a Alice no País das Maravilhas; Zion (Sião), é uma alusão a terra prometida para muitas religiões, e para algumas, o ultimo refúgio para se viver após o Apocalipse.

Talvez a mais importante das alusões seja é a do mito da caverna, de Platão. Nesse mito, todos os homens viam somente sombras, achando que esse era o mundo real. Quando um dos homens viu o mundo real, ninguém acreditou nele. A Matrix é somente uma ilusão na qual todos os seres humanos viviam – daí muitas expressões do tipo “saia da Matrix”, alertando as pessoas a saírem de um mundo de ilusões e encararem os fatos, lutando pela verdade.

Arquiteto foi o programa usado para construir todas as versões da Matrix. Quando a última e atual versão da Matrix foi feita, ela não funcionou corretamente para 1% dos humanos, que  então eram ejetados dela. Alguns desses sobreviveram e formaram Zion. Já houveram cinco escolhidos antes de Neo. O Arquiteto lhes dava a escolha de deixar Zion ser destruída, mas juntar um grupo de sobreviventes para começar uma nova, ou ele ir até a fonte. Todos antes de Neo escolheram a primeira opção, apenas Neo escolheu a segunda. O propósito do Arquiteto é balancear as equações da Matrix, enquanto o da Oráculo e desbalancear.

Veja mais comentários sobre o filme no nerdcast 156 sobre matrix (“vem cá, te dou uma balinha!“).

Outras discussões

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16 comments

    1. esse post é essencial pra todo mundo que ler o livro praticamente. li e achei um livro ótimo, mesmo que demasiado confuso e complicado de se ler. fiquei bastante pertindo e matutando a cabeça em algumas partes, pra lembrar o que era o que e do por que estar acontecendo. mas esse post esclareceu bastante algumas coisas. parabéns!

  1. Excelente resenha. Curti o livro mas confesso que não muito me surpreendeu. Talvez por criar tamanha expectativa acerca dos elogios, mas não deixa de ser uma excelente leitura e recomendo a todos que curtem o gênero. Quanto ao filme, épica a contribuição que este acrescentou à industria cinematográfica. Parabéns Vinicius, conseguiu destrinchar praticamente um ‘cubo mágico’ e oferecer ao leitor um toque na alma de Neuromancer.

  2. Acabei de ler o livro, mas não tinha gostado muito. Não sei se por esperar muito dele, não sei se por ficar meio perdida no começo (talvez se eu tivesse lido o Burning Chrome antes, tivesse sido melhor) ou talvez só por não estar acostumada a ler livros mais pro lado cyberpunk. Depois de ler seu texto até achei o livro melhor, haha, e deu vontade de ler o restante da trilogia 🙂

    1. Eu também estava esperando muito do livro e fiquei bem perdido na história, tive que estudar para acompanhar rsrs acho que é um daqueles livros que as discussões em cima ficam mais importantes que o enredo.
      Obrigado pelo comentário!

  3. Maelcum ouvia “Prince Douglas – North Of The Border Dub” em seu par de fones de ouvido com espumas laranja brilhantes. Um Dub honesto durante a incursão na Villa Straylight.

    – Meça duas vezes, corte uma, mon – disse Maelcum.

  4. Estou em 2022 pra comentar que esse artigo foi/é muito ÚTIL até hj pra mim. Parabenizo a quem o escreveu, me auxiliou demais a me situar durante a leitura. Grato!

  5. Ótimo texto Vinicius, terinei o livro e fui conferir na net se tinha entendido tudo direitinho, afinal, todos que leram sabem da complexidade dessa leitura.

    Só um ponto, você cita “No final do livro, o finlandês diz “eu sou a matrix” – seria ele o futuro Agente Smith?”

    Na realidade quem diz “eu sou a matrix” é Wintermute que aparece para Case com a aparência do Finlandês, inclusive ele faz bastante isso ao longo do livro, pois prefere utilizar sempre uma imagem familiar para Case.

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