Eutanásia, mistanásia e algumas outras formas de morrer

Maria Auxiliadora Roggério

Não é nada fácil lidar com a morte. A maneira como a entendemos exerce influência direta sobre a forma como a encaramos. Se perguntarmos, todos esperam ter uma vida bem vivida, com muitas realizações e, quando a hora chegar, que já estejam bem velhos e a morte seja rápida, sem sofrimentos. De preferência, quando estiverem dormindo.

Evitamos falar em morte porque nos dá medo do desconhecido, do que não conseguimos controlar. Ao vivenciarmos a perda de um ente querido, deparamo-nos com a proximidade de nossa própria finitude. Algo antes visto como distante provoca nossos pensamentos e sentimentos em relação ao enfrentamento da morte.

Graças ao avanço tecnológico e científico, as práticas médicas na atualidade possibilitam melhores recursos para lidar com doenças e curas e consequente prolongamento da vida. Contudo, sendo a morte inexorável, em algum momento somos impelidos a enfrentar o processo de morrer e da morte, seja o nosso ou o de alguém próximo. Geralmente, quando um grande sofrimento já está presente.

Diante de quadros irreversíveis de uma enfermidade crônica ou iminência de morte, muitas reações são possíveis e variados modelos de enfrentamento surgirão, levando em consideração aspectos pessoais, familiares, éticos, morais, legais e espirituais/religiosos, além da influência histórica e sociocultural. Como exemplo, a possibilidade de viver a doença e a morte dignamente, com autonomia para decidir o momento e a forma da partida.

Até que ponto as intervenções médicas numa fase terminal contribuem com o alívio ou com o prolongamento do sofrimento, sem incorrer em violação da dignidade humana?

De acordo com a Resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) nº 1805 de 09/11/2006,

“Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.”

Isso vai ao encontro do conceito de ortotanásia, que implica em acompanhar o paciente no curso natural da morte, sem abreviá-la ou adiá-la e prolongar o sofrimento, oferecendo suporte necessário ao paciente através de cuidados paliativos, para que o processo ocorra com o mínimo de sofrimento possível e possa permitir morte digna. Os cuidados paliativos são realizados por equipe multiprofissional, com o objetivo de atender a pessoa em todas as suas dimensões, atuando nas esferas biopsicossocial e espiritual do paciente e também de seus familiares. São um conjunto de procedimentos e ações que visam melhorar o bem-estar e a qualidade de vida nessa fase. É um olhar para a pessoa como “um todo”, para além do estado irreversível.

Estar disposto a tratamentos com esperança de cura não significa submeter-se a mais dor e sofrimento além do inevitável, com intervenções inúteis e benefícios questionáveis. Se o objetivo principal for a cura da doença, e esta não tiver chances de ocorrer, a pessoa doente é desrespeitada e, nesse contexto, surge a distanásia.

Na prática da distanásia, a vida humana fica restrita à manutenção de sinais vitais para prolongar ao máximo a vida, desconsiderando outros valores como a autonomia e a dignidade. O processo de morrer estende-se com excesso de intervenções terapêuticas que não contribuem com a reversibilidade do quadro mórbido, podendo trazer mais malefícios do que os efeitos da doença que se pretende curar. Visa ao adiamento da morte e não, necessariamente, benefícios ao paciente. Também é referida como “obstinação terapêutica”, pois os médicos, com o intuito de tentar salvar o paciente ou por temerem acusações de conduta negligente, utilizam procedimentos que prolongam artificial e inutilmente o processo de morte, comprometendo a qualidade de vida do paciente, ocasionando maiores desgastes físicos, emocionais e monetários também aos familiares.

O Código de Ética Médica (CFM, 2010) proíbe a distanásia, vedando ao médico a utilização de seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, sob a forma de procedimentos terapêuticos desnecessários (princípios fundamentais VI e XXII).

A prática da distanásia é condenada ética, moral e legalmente, representando violação dos direitos humanos e da dignidade, podendo caracterizar conduta criminosa.

Ao contrário da ortotanásia na qual a morte ocorre sem antecipação e de forma natural, se alguma pessoa estiver vivendo um sofrimento insuportável, sem perspectivas de melhora e manifestar desejo de morrer, a legislação de alguns países permite a cessação da vida por meio de suicídio assistido ou de eutanásia. Em ambas as práticas, trata-se da administração de uma dose letal de algum fármaco, respeitando o estipulado pela lei do país, a autonomia e o desejo do cidadão sobre viver a própria morte em paz e com dignidade. A diferença entre ambas consiste no ato em si: na eutanásia, a administração do fármaco é feita por outra pessoa, geralmente um médico; já no suicídio assistido, um médico prescreve o medicamento para o procedimento e o próprio paciente autoadministra a dose fatal.

A eutanásia e/ou suicídio assistido são permitidos em países como Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Espanha, Portugal, Canadá, Colômbia, Cuba, Nova Zelândia, Alemanha, Áustria, Suíça. Na Austrália e nos Estados Unidos, apenas em alguns estados. No Equador, a Corte Constitucional descriminalizou a eutanásia em 07/02/2024 e é aguardada a regulamentação pelo Ministério da Saúde e pela Assembleia Nacional.

Na Suíça, por exemplo, o suicídio assistido é um procedimento legalizado desde a década de 1940, e foi o método escolhido pelo cineasta Jean-Luc Godard em 13 de setembro de 2022, aos 91 anos de idade (g1.globo/2022).

Na Holanda, tanto um método como o outro são permitidos desde 2002 e, somente no ano de 2022, foram realizadas 8.720 eutanásias (VAIANO, B., 2024). Uma nova modalidade de eutanásia nesse país ganhou destaque na mídia em fevereiro de 2024: a eutanásia dupla. A notícia da morte de Andreas (Dries) Van Agt, ex-premiê da Holanda e de sua esposa Eugenie Krekelberg foi veiculada em dezenas de sites como o casal que morreu por eutanásia dupla e de mãos dadas.

Dizem as notícias: ambos tinham 93 anos de idade e estavam juntos há 70 anos. Dries foi um político influente, de personalidade marcante, católico devoto. Em 2019, sofreu um acidente vascular cerebral que deixou sequelas as quais afetaram sua criatividade, concentração e capacidade de fazer discursos, levando-o a sentir-se frustrado. Com relação à esposa, somente foi mencionado que Eugenie acompanhava o marido e o aconselhava ao longo de sua extensa carreira política. Não foi informada qual enfermidade acometeu a esposa nem a real gravidade de seu estado de saúde, somente que a saúde havia piorado e, como não queriam viver um sem o outro, optaram pela eutanásia dupla, morrendo juntos e de mãos dadas.

Segundo Elke Swart, diretor do Expertisecentrum Euthanasie à agência de notícias Reuters:

“O interesse pela eutanásia dupla está crescendo, mas ainda é algo raro. É puro acaso que duas pessoas estejam sofrendo insuportavelmente, sem perspectivas de alívio ao mesmo tempo e que ambas desejem a eutanásia”. (g1.globo/2024).

A eutanásia e o suicídio assistido são considerados moralmente inaceitáveis por parte da sociedade e do senso moral criado pelo catolicismo. No Brasil, suicídio assistido e eutanásia são considerados crimes. O artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que trata da inviolabilidade do direito à vida, em seu inciso III assevera que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. É vedado ao médico abreviar a vida do paciente, mesmo que por solicitação deste ou de seu representante legal (Código de Ética Médica, cap. V, art. 41), porém, se um médico se compadecer e, por uma questão de humanidade decidir participar de alguma dessas práticas, poderá ser enquadrado no artigo 121 do Código Penal, que estipula pena de reclusão de seis a vinte anos a quem comete assassinato. No entanto, sua punição poderá ser atenuada e a pena reduzida de um sexto a um terço, considerando o disposto em seu § 1º: crime motivado por relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de intensa emoção. (!!) Também configura crime o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, com penas de reclusão especificadas no artigo 122.

Atos de imprudência, imperícia ou negligência de um médico que resultam na morte de um paciente são violações éticas consideradas gravíssimas e constituem erro médico passível de enfrentamento de processos e cassação do registro profissional. Omissão do direito à saúde e a negação da dignidade humana, provocam a morte miserável, precoce e evitável, caracterizando a prática de mistanásia, e afrontam a Constituição Federal.

Gerado com IA da plataforma DALL·E 3 via Microsoft copilot
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O termo mistanásia foi cunhado em 1989 pelo bioeticista brasileiro Márcio Fabri dos Anjos, significando “morte infeliz”, pois impingida pela falta de infraestrutura e de condições mínimas para uma vida digna, pela manutenção da pobreza, da violência, do consumo de drogas. Esse conceito surgiu:

“[…] diante da imensa desigualdade social e da situação de abandono socioeconômico, violência e negligência política a que se submetiam pessoas cujas vidas não eram valorizadas, ocasionando mortes evitáveis, precoces e infelizes.” (PESSINI, L.; RICCI, L.A.L., apud NETO, E.J.M.; BEZERRA, T.J.S.L., 2018).

A morte miserável resultante da má prática médica é classificada como mistanásia passiva ou omissiva. As vítimas são pessoas em situação de exclusão social, econômica ou política, em condições de carência ou portadores de deficiências que não conseguem atendimento necessário e a tempo ou, sequer, conseguem ingressar no sistema público de atendimento; que não têm o mínimo para sobrevivência e/ou não obtém auxílio do governo. Omissão de socorro; preferência de atendimento à pacientes com melhores prognósticos de sobrevivência ou de cura; não aplicação de cuidados paliativos a idosos ou a pacientes em condições gravíssimas ou em fase terminal de doenças, por julgar desnecessário ou oneroso; justificar imperícia culpabilizando as instalações e precariedades das instituições médicas e a baixa remuneração que recebem; seres humanos submetidos à experiências ou a extermínio; são algumas das características.

Mistanásia ativa é a resultante da crueldade humana, como uma prática comum dos governos e indiferença social. O Estado que deveria fundamentalmente garantir o direito de seguridade social (assistência social e direito universal à saúde preventiva e terapêutica), não consegue oferecer atendimento – seja em termos de suficiência ou de qualidade – à maioria da população, falhando na prevenção e no tratamento das doenças, impedindo que os direitos constitucionais à saúde, integridade física e dignidade possam ser exercidos pelos cidadãos. Ao negar direitos fundamentais básicos como o direito à saúde e direitos sociais, provoca a morte social e a morte física, evidenciando a precarização de assistência prestada à população em geral, mas, sobretudo, à população excluída/invisibilizada socialmente, tratada como hierarquicamente “inferior”. Mistanásia viola não somente a dignidade da vida humana, como também o direito à morte digna.

Governantes aparentemente mais preocupados com o poder, criam comissões, destinam grandes recursos, apresentam narrativas, manipulam dados para mascarar esse tipo de assassinato e passar a impressão de que estão lidando com o problema, quando, em verdade, são ética e moralmente indiferentes. Isso, quando não negam a existência ou a gravidade dos problemas, apesar de evidências gritantes observadas, por exemplo, nas inúmeras chamadas “cracolândias” que se espalham pelo país; na insegurança alimentar e na precariedade e insalubridade das moradias em locais de riscos às quais estão sujeitas as pessoas economicamente desfavorecidas; às pessoas em situação de rua, cujo contingente só faz crescer em proporcional contraste ao aumento de sua invisibilidade.

Sem dúvida, há entre governantes, classe dominante e setores da sociedade, os que se compadecem dessa situação e genuinamente se preocupam com a vida e a sobrevivência desses cidadãos, atuando para mitigar o sofrimento humano e proporcionar-lhes qualidade de vida.

A morte social é ocasionada por reprodução sistêmica de desigualdades e exclusão. Os sujeitos são estigmatizados e marginalizados. Tornam-se “ninguém”, desprovidos de direitos fundamentais, o que atinge a individualidade com riscos para a existência. Vulneráveis, abandonados, desprezados e humilhados, sentem-se sem importância para o restante da sociedade. Privados do essencial à vida e forçados a permanecer nessas condições, a morte social é consequência inevitável (porém, disfarçada, aparentemente natural), podendo vincular-se ao processo de morte biológica.

(Ouso questionar se a política do uso indiscriminado de agrotóxicos, avalizada pelo Estado, inclusive com defensivos proibidos em outros países – mas, fartamente aplicados em nossa agricultura – por causarem doenças gravíssimas como câncer, também não seria uma forma de mistanásia, assim como a política de combate ao tráfico e uso de drogas e a (des)atenção dirigida aos dependentes químicos.)

Fontes

  • CFM, 2006 – Resolução nº 1805 de 28 de novembro de 2006, disponível em: https://sbgg.org.br/2014/10/ Tratamentos na terminalidade da vida. Acessado em 14 mar 2024.
  • CFM, 2010 – Código de Ética Médica – Res.(1931/2009). Cap. 1 princípios fundamentais VI e XXII, e Cap. V – Relação com pacientes e familiares, art. 41, de 17 set 2009. Brasília, 2010. Disponíveis em: https://portal.cfm.org.br Acessado em 14 mar 2024.
  • g1.globo, 2024 – “Ex-premiê da Holanda e esposa morrem por eutanásia dupla e de mãos dadas”. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/02/12. Acessado em 13 mar 2024.
  • g1.globo, 2022 – “Suicídio assistido: entenda o procedimento legalizado na Suíça pelo qual passou o cineasta Jean-Luc Godard”. Disponível em: https://g1.globo.com/saúde/notícia/2022/09/14. Acessado em 13 mar 2024.
  • NETO, Elias Jacob de Menezes; BEZERRA, Tiago José de Souza Lima (2018) – “A prática da mistanásia nas prisões femininas brasileiras ante a omissão do direito à saúde e a negação da dignidade humana”. Rev. Bras. Polít. Públicas, v. 8, nº 1, 2018, pp 472-493. Disponível em: www.publicacoesacademicas.uniceub.br . Acessado em 14 mar 2024.
  • VAIANO, B. (2024) – Eutanásia: os limites do direito de morrer. Disponível em: http://super.abril.com.br/saude, 14 fev 2024. Acessado em 13 mar 2024.
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