Os narcisistas entre nós

Maria Auxiliadora Roggério

Para manter nossa autoestima, o equilíbrio emocional e operarmos produtivamente, é necessário que haja uma certa dose saudável de afeição direcionada a nós mesmos. Entretanto, quando a maior parte dos afetos é voltada a nós mesmos, torna-se algo indesejável, característico de Narcisismo – um termo relacionado ao mito de Narciso, o qual designa um amor pela imagem de si mesmo.

Narciso, de Caravaggio (1571-1610). Fonte: Wikipedia
Narciso, de Caravaggio (1571-1610). Fonte: Wikipedia

O conceito de narcisismo tem sido abordado e interpretado por vários teóricos de diversas correntes psicanalíticas. Quem primeiro empregou esse termo foi o sexologista H. Ellis em 1898 (citado por Freud em nota de 1920 acrescentada ao estudo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”), para denominar uma forma de perversão. Ao estabelecer a concepção psicanalítica de Narcisismo, Freud postula que a pessoa toma seu próprio corpo como sendo, ao mesmo tempo, fonte e objeto da libido sexual. Embora tenha utilizado inicialmente o termo narcisismo em 1910 para explicar a escolha de objeto nos homossexuais, é em 1914 no estudo “Sobre o narcisismo: uma introdução” que ele estabelece o conceito psicanalítico de narcisismo, considerando particularmente os investimentos libidinais.

Muitas pessoas apresentam traços de personalidade que poderiam ser classificados como narcisistas, no entanto, para considerar que esses traços caracterizem um Transtorno da Personalidade Narcisista, é preciso que sejam persistentes ao longo do tempo, rígidos e mal adaptativos, além de causar sofrimento subjetivo e grande prejuízo funcional.

A principal característica desse Transtorno engloba um sentimento de grandiosidade de si mesmo, necessidade de admiração excessiva e falta de empatia. Surge no início da idade adulta e pode ser observado em vários contextos. Em adolescentes é comum encontrar traços narcisistas, o que não significa que, necessariamente, terão um Transtorno da Personalidade Narcisista.

Critérios diagnósticos ¹

Para que este transtorno seja configurado, a maioria destes indicativos deve estar presente:

As pessoas com este transtorno sentem-se muito importantes, atribuindo grande (e irreal) valor às suas realizações; esperam que os demais as reconheçam como superiores, especiais, exigindo aplausos e admiração excessiva; menosprezam as contribuições dos outros, principalmente quando são estes os que recebem elogios ou reconhecimento. Surpreendem-se quando não são enaltecidos.

Sentem inveja ou creem serem invejados; julgam que seriam mais merecedores do sucesso ou dos bens dos outros. São voltados a fantasias de sucesso ilimitado, poder, beleza, inteligência ou amor ideal. Sua autoestima é muito frágil; comparam-se com pessoas famosas e privilegiadas e procuram associarem-se a estas, pois, somente pessoas especiais ou superiores poderiam compreendê-las, por estarem “à sua altura”. Desse modo, sua autoestima é “espelhada” pelos valores idealizados atribuídos a esses seres especiais e aparece como exagerada.

Comportam-se de modo arrogante e insolente com atitudes de desdém ou condescendência. São presunçosos: acreditam que merecem tratamento diferenciado dos demais e esperam que suas expectativas se realizem automaticamente.

Não se preocupam com sentimentos ou necessidades dos outros, demonstrando ausência de empatia.

Nos relacionamentos interpessoais podem agir como exploradores, involuntária ou conscientemente, pois só pensam em seus interesses próprios e em obter vantagens em benefício pessoal.

Reconhecendo um narcisista

Como saber se nós temos personalidade narcisista e/ou se convivemos com alguém que a possua?

Narcisistas acreditam representar a perfeição; não estão cientes de seu problema e, desse modo, nada têm que modificar em si mesmos. Aparentam amabilidade e usam de sedução para aproximarem-se das pessoas as quais poderão servir aos seus propósitos. Certas pessoas mostram-se muito gentis e consideram-se úteis, caridosas e melhores do que as outras. Estão sempre à disposição para ajudar e o fazem com aparente altruísmo, no entanto, não deixam de contar a outros o que fizeram, esperando serem elogiadas, nem de lembrar sua ajuda ao beneficiário de sua ação, tornando este um eterno devedor.

Em seu mundo interior tudo é perfeito. Em confronto com a realidade externa, frustram-se com o mundo real e passam a inventar uma vida de mentiras para provocar a inveja nos outros e atrair atenção e admiração, e evitar o sofrimento que só é mitigado em seu mundo ideal. Para sustentar suas fantasias, mentem cada vez mais, superestimam seus feitos e suas habilidades na esperança de serem reconhecidas como pessoas de talento e sucesso.

Incomodam-se quando confrontados, podendo tornarem-se agressivos se a situação fugir ao seu controle. Se sentirem que serão expostos de alguma maneira, tendem a fugir. Frequentemente atacam a autoestima, a autoconfiança e a autovalorização das pessoas com as quais interagem (uma tentativa de compensar a fragilidade interior). Desferem críticas cruéis aos que percebem como ameaça. Farão de tudo para destruir as pessoas cujas virtudes são por eles invejadas.

São pessoas que sempre dão sua opinião sobre qualquer coisa, mesmo que nunca solicitada, pois acreditam que sabem mais do que todos. O que fazem, o que compram e onde compram, o que possuem, o estilo de vida que escolhem, sempre é o que consideram como melhor; os outros não saberiam agir com tamanha perfeição. Isso acontece porque têm uma percepção exagerada do “eu” e sentem-se poderosos, especiais, únicos no mundo.

Com a autoestima ligada à aparência física e obcecados com a beleza e a imagem corporal, acham-se merecedores do que há de melhor no mundo, por serem “belos e sarados”. Também consideram a aparência física dos outros como um valor.

Socialmente são superficiais e agem com falsidade. Sua forma de falar pode estar carregada de lógica e ambiguidades, insinuações e silêncios, frases incompletas, o que pode gerar mal entendidos que, numa situação futura, poderão vir a favorecê-los.

No dia a dia podem ser reconhecidos em atitudes/comportamentos como: tratar garçons em restaurantes com desprezo e ofensas; insistência em serem atendidos somente pelo chefe ou pelo melhor profissional (como médico, cabeleireiro, etc.) ou em frequentar somente as melhores instituições, desvalorizando os que os desapontam; ao chegarem em um local esperam sempre por uma grande recepção; surpreendem-se com o desinteresse dos outros por não os invejarem ou às suas posses; fazem de tudo para arrancar elogios e, se isso não ocorre, ficam enfurecidos.

São pessoas que não respeitam filas, porque suas prioridades são mais importantes do que as dos outros; irritam-se quando não são ajudados em suas tarefas, as quais consideram mais importantes que as necessidades e afazeres de qualquer um; não se incomodam em sobrecarregar de trabalho os demais para conseguirem o que acreditam precisar; não hesitam em tentar demonstrar poder sobre algum prestador de serviços procurando inferiorizar e intimidar com táticas de controle e esbravejando frases como “olhe onde você está e olhe onde eu estou”, com ofensas raciais, de gênero ou classe social.

Como se consideram especiais, estão sempre buscando algum privilégio: por exemplo, ao pedir um prato “caprichado”, uma porção extra, uma dose “na faixa”, em algum restaurante; um desconto em algum serviço mesmo depois de já contratado e acertado o preço final; insistir para mudar da classe econômica para a primeira classe durante o voo… Se não conseguem a vantagem, depreciam e insultam seus “opositores”.

Ao conversar com alguém sobre seus próprios problemas são extremamente detalhistas e esperam que os outros os ouçam com atenção e preocupem-se com eles, no entanto, não têm paciência para ouvir os outros em suas dificuldades e, frequentemente os interrompem, para voltar a falar de si mesmos. Quando chegam a perceber os sentimentos e as necessidades do outro, consideram estes como sinais de fraqueza e vulnerabilidade.

São frios emocionalmente e não se interessam pelo próximo. A tendência é procurar por pessoas para seus relacionamentos românticos ou de amizade, que sirvam ao seu interesse ou que façam crescer sua autoestima. Usam todo seu charme para conseguir a confiança de alguém e poder usá-lo a bel prazer.

Extremamente vulneráveis. O medo de serem rejeitados e abandonados os levam a manipular as pessoas para atenderem suas necessidades de afeto; porém, suas demandas emocionais nunca são satisfeitas a contento, assim, continuam a “sugar” emocionalmente as pessoas em seus relacionamentos, tentando suprir essa carência.

A manipulação é uma arma poderosa ao narcisista, que é capaz de qualquer coisa para enganar, difamar, destruir, quem, de alguma maneira, passe a ocupar o centro das atenções em seu lugar. Como não consegue crescer e tornar-se uma pessoa melhor, ataca a reputação do outro e o inferioriza, para continuar a se sentir superior.

Muito possessivos, não medem esforços para validar a imagem de sua superioridade, desprezando os demais para que se sintam diminuídos e dependentes e atendam aos seus propósitos de poder e autoridade, satisfazendo sua necessidade de domínio da situação, o que lhes representaria uma vitória.

Devido à baixa autoestima, os narcisistas são muito sensíveis à críticas ou derrotas. Diante de situações assim que os exponham, sentem-se humilhados, envergonhados e vazios, o que os levam a reagir com desdém, com raiva ou contra-atacar. O que segue é um retraimento social ou uma falsa humildade na tentativa de dissimular e proteger a grandiosidade.

Um sofrimento do passado é extremamente útil ao narcisista, que constrói sua identidade sob a narrativa da dor, sendo sempre uma vítima que, por já ter sofrido tanto, é um eterno credor da vida, justificando sua necessidade de apoio e atenção, levando-o a relacionamentos abusivos por meio de imperceptíveis estratégias de manipulação.

Seu comportamento é dramático, emotivo e extremamente egocêntrico. O egocentrismo exacerbado que acomete o narcisista gera infelicidade e prejuízos não somente a si mesmo, mas, também às pessoas com as quais se relaciona.

A origem do narcisismo patológico pode se encontrar nas deficiências da primeira infância em que não foi possível estabelecer um apego seguro com seus pais ou cuidadores, levando a criança a perceber-se como sem importância e indesejada. O surgimento deste transtorno leva em conta a influência de fatores ambientais e sociais.

As características da personalidade narcisista são exibidas em múltiplas situações sociais e pessoais e devem ser observadas a longo prazo, considerando os critérios estabelecidos para diagnóstico.

¹ Segundo o DSM-IV-TRtm – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Trad. Cláudia Dornelles; – 4.ed. rev. – Porto Alegre: Artmed, 2002.

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