Nuvem de gafanhotos e a Meteorologia

Uma nuvem de gafanhotos se formou no final de maio de 2020 no Paraguai, onde destruiu lavouras de milho, e atravessou certas regiões da Argentina rumo à fronteira do Brasil com o Uruguai. Apesar desse fenômeno ser comum em algumas regiões do mundo, como na África, aconteceu poucas vezes na América do Sul e anda preocupando produtores rurais da região.

Nuvem de gafanhotos na região do Chaco, Paraguai. Fonte: Medina et al. (2017)
Nuvem de gafanhotos na região do Chaco, Paraguai. Fonte: Medina et al. (2017)

Esse gafanhotos pertencem à espécie Schistocerca cancellata, que é a principal espécie de enxame na América do Sul subtropical e uma das poucas do mundo que pode ter hábito gregário. São os maiores dentro da família Acrididae, medindo entre 4 cm (machos) e 6 cm (fêmeas). Possuem uma enorme mandíbula, podendo mastigar um galho em segundos. Devoram cerca de 400 espécies vegetais, mas não atacam outro animais e não são vetor de nenhum tipo de doença.

Eles buscam solo úmido e arenoso para depositar seus ovos, próximo de uma vegetação que possa alimentar as ninfas de gafanhoto até que as asas se desenvolvam o suficiente para que consigam voar em busca de alimento. Uma pancada de chuva muito forte faz com que os ovos eclodam todos de uma vez, garantindo o nascimento de quase todos os indivíduos e um “boom” populacional.

As aglomerações causadas devido ao aumento da taxa de reprodução desencadeiam uma mudança de comportamento, através de uma alteração hormonal. Quando não estão mais solitários, eles mudam de cor e se transformam em criaturas sociais ou “gregárias”, formando grandes enxames. Se eles estão num ambiente que não é favorável, com falta de alimento e clima ruim, eles se reúnem e saem em bando.

Os gafanhotos vivem de 3 meses a 1 ano. Quando migram, muitos vão morrendo no caminho, são predados e, com o frio, perdem a velocidade. Após esse ciclo de expansão, a tendência é que os insetos se dispersem, a chamada fase isolada, e o nível populacional se estabilize. A nuvem se move ao longo do dia e se acomoda tarde da noite.

Gafanhoto da espécie Schistocerca cancellata com coloração "solitária" (A) e gregária (B). Fonte: Martina et al. (2019)
Gafanhoto da espécie Schistocerca cancellata com coloração “solitária” (A) e gregária (B). Fonte: Martina et al. (2019)

Uma medida comum contra os gafanhotos é usar pesticidas nesse horário sobre os insetos para evitar que eles se unam e se reproduzam. Porém, o uso de inseticida é paliativo e pode não ter um resultado tão bom, pois são muitos insetos, que voam de forma muito rápida a longas distâncias, em grande quantidade. O governo argentino chegou a realizar uma primeira ação contra a nuvem de 2020, mas foi considerada ineficiente pelo próprio órgão. O uso desses pesticidas é controlado e deve ser feito e indicado pelas autoridades, para não causar danos à população e outros insetos, como os polinizadores.

Outro motivo para o surgimento dessas nuvens é a eliminação dos inimigos naturais do gafanhoto (pássaros, sapos, fungos e bactérias), em parte pelo uso incorreto e abusivo de inseticidas e agrotóxicos. Ou seja, com o avanço do agronegócios e do aquecimento global, que gera temperaturas médias maiores, chuvas cada vez mais irregulares e períodos de seca, é de se esperar que esse fenômeno seja cada vez mais comum. Desde 2015, os argentinos voltaram a relatar a formação de nuvens de gafanhotos com maior frequência do que nos anos anteriores.

Temperaturas acima de 15°C (preferencialmente entre 25 e 30°C) são preferenciais para o sobrevoo dos gafanhotos. Seu deslocamento segue preferencialmente a direção dos ventos próximos à superfície, influenciado pela disponibilidade de vegetação.

Nuvem de gafanhotos (junho/2020)

Estima-se que essa nuvem possuam por volta de 40 milhões de indivíduos por quilômetro quadrado e que percorram até 150 quilômetros por dia, comendo o equivalente a 2 mil vacas comeria nesse período. Geralmente ocorrem a cada dois ou três anos na Argentina, Paraguai e Bolívia, mas raramente no Brasil. No Rio Grande do Sul já houve ocorrência de nuvens formadas por outras espécies, nos anos 1940 e 1946. Houve outros casos no Mato Grosso, nos anos 1980, e mais recentemente no Pará e no Maranhão, mas não com essa magnitude.

Uma condição propícia para a formação de uma nuvem é o clima quente e seco, após uma pancada de chuva forte e concentrada em curto período de tempo durante a eclosão dos ovos. Um estudo chega a correlacionar o Mega-Niño de 1877-1878 com a propagação de gafanhotos na Costa Rica, com grandes prejuízos para a agricultura. O fenômeno climático El Niño promove tempo quente e seco durante certos meses em algumas localidades, como a região desse estudo.

Em 2018 e 2019, uma série de ciclones, que os cientistas atribuem a mares com temperaturas excepcionalmente quentes, chegou ao Oceano Índico e alagou um deserto arenoso na Península Arábica conhecido como Quarteirão Vazio. Em seguida, o número de gafanhotos aumentou subitamente.

Um outro estudo desenvolveu modelos que relataram um aumento potencial de sucesso na reprodução de gafanhotos em áreas com alta variação histórica do NDVI (Índice de Vegetação da Diferença Normalizada), que é uma assinatura de áreas semi-desérticas. Um recente aumento do NDVI na escala de 2 meses na região noroeste da Argentina, o que apóia a hipótese de surtos relacionados à chuva.

A direção dos ventos é determinante nos padrões de voo dos gafanhotos. Em 1988, foi constatado que os gafanhotos-do-deserto se deslocavam da África Ocidental até o Caribe em apenas 10 dias, por voarem junto com o vento.

Com relação à nuvem desse ano, se ocorresse uma convergência dos ventos, os gafanhotos poderiam se deslocar para o norte da Argentina e convergir com o oeste e noroeste do Rio Grande do Sul, o que possibilitaria a formação da nuvem e a entrada em território brasileiro. O governo do RS deixou fiscais em vigilância nas cidades próximas à fronteira com a Argentina.

Localizações relatadas da nuvem de gafanhotos de maio/junho de 2020. Fonte: Senasa
Localizações relatadas da nuvem de gafanhotos de maio/junho de 2020. Fonte: Senasa

Um estudo de pesquisadores da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) apresenta uma simulação da trajetória da nuvem de gafanhotos. Os parâmetros de entrada utilizados no modelo estão relacionados ao comportamento de voo dos insetos, como a altitude que podem atingir e o horário em que normalmente decolam e pousam. Para as variáveis ambientais, são consideradas as previsões do GFS (Global Forecast System) da região. Quanto maior a altitude de voo considerada, mais longe chegam. No entanto, seguem na direção do Uruguai, sem passar para o Brasil.

Até o dia 24/06, os ventos favoreciam a chegada dos insetos no Rio Grande do Sul. Mas avanço da frente fria no sul do país no final de junho atuou na dispersão da nuvem. Como eles não gostam de chuva, acabam se dispersando, voltam a se reunir em grupos menores e vão embora. Além disso, com a direção predominante do vento seguindo para o Uruguai, a tendência é de que os grupos menores sigam migrando para esse país.

O Serviço Nacional de Saúde e Qualidade Agroalimentar (Senasa), uma agência do governo argentino, emitiu alertas sobre o fenômeno e divulgou o acompanhamento da posição da nuvem em seu site.

Curiosidade: esse assunto incomum gerou uma explosão de pesquisas no Google, com termos como “Nuvem de gafanhotos na bíblia”, “Dez pragas do Egito” e até “Como fazer gafanhoto frito?”. Na verdade, a agência da ONU para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) já publicou um livro que mostra como o hábito de comer insetos é importante para a segurança alimentar do mundo.

Atualização: O governo argentino promoveu novas ações com inseticidas em superfície na região onde a nuvem estava concentrada – Chañar, 55 km a oeste de Curuzú Cuatiá. Com a chegada de uma nova frente fria, os ventos fortes, a chuva e o frio complicaram a vida dos gafanhotos.

Depois de alguns dias estacionados, com as temperaturas elevadas, os insetos se movimentaram no segundo final de semana de julho. Ao encontrar condições propícias, como solo arenoso e clima seco, os gafanhotos podem botar entre 80 a 120 ovos por dia. Caso isso tenha ocorrido, em até 90 dias, essa segunda geração teria condição de voar e fazer uma nova migração. Ou seja, mesmo eliminando 90% dos insetos, ainda existe um risco de uma nova onda.

Fontes

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