Uma mostra de cinema é um evento cultural que reúne exibições de filmes com o intuito de promover produções cinematográficas de diferentes gêneros, épocas e países, muitas vezes explorando temáticas específicas ou apresentando obras de cineastas consagrados e emergentes. Essas mostras oferecem ao público a oportunidade de vivenciar o cinema de maneira mais imersiva, com discussões, palestras e debates que enriquecem a experiência. Tive o privilégio de participar de duas experiências únicas nesse contexto: a I Jornada de Cinema Silencioso, que resgata a magia do cinema mudo com trilhas sonoras ao vivo, e um Noitão no Cine Belas Artes, conhecido por suas sessões maratonas que atravessam a madrugada com filmes de variados estilos.
Os cinemas de rua, como a Cinemateca ou o Cine Belas Artes, possuem um diferencial marcante em relação às grandes redes de cinema comerciais. Eles oferecem uma experiência mais autêntica e personalizada, preservando o charme e a atmosfera única de uma época em que o cinema era um ponto de encontro social e cultural. Esses espaços valorizam a curadoria de filmes, frequentemente exibindo títulos independentes, clássicos e de diretores renomados, além de promoverem eventos especiais como debates, mostras temáticas e maratonas cinematográficas.
Cinemateca – I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso
A I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso aconteceu na Cinemateca Brasileira e recriou para os espectadores contemporâneos a experiência do cinema mudo. O evento, que foi de 10 a 19 de agosto de 2007, contou com uma seleção de 41 filmes, muitos deles inéditos ou raramente projetados nas telas brasileiras, a maioria acompanhada por música ao vivo. Além dos filmes e das atrações musicais, o evento incluiu exposições, conferências e oficinas com especialistas e músicos dedicados à pesquisa sobre o cinema mudo. Toda a programação, com exceção das oficinas com instrumentistas alemãs especialmente convidadas, teve entrada franca.
O programa “Ninfas e arranha-céus: cinema, modernidade e impulso estetizante” apresentou filmes americanos produzidos entre 1897 e 1923, divididos entre obras esteticamente rebuscadas, com a dança moderna como denominador comum; seriados de ação e aventura da década de 1910; e vistas urbanas que capturam o início da vida moderna em grandes centros urbanos como Nova Iorque e Chicago.
Uma das seções exibiu o cinema pernambucano dos anos 20. Naquele período, um grupo de amantes do cinema em Recife realizou uma série de filmes que se tornaram referências da produção brasileira da época, tanto para pesquisadores quanto para cinéfilos. A seleção incluiu trabalhos de diretores como Jota Soares, Gentil Roiz e Ary Severo, além das atuações de Almery Steves e Rilda Fernandes, que se firmaram como estrelas do período. Esses filmes foram restaurados no laboratório da Cinemateca Brasileira a partir de antigos materiais em nitrato conservados pela Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Graças ao processo Desmet Color, obras como “Veneza americana”, “Jurando vingar” e “Grandezas de Pernambuco” puderam ser vistas em cópias novas com as mesmas cores das viragens e tingimentos dos nitratos originais.
A exibição de “Aitaré da praia” foi uma das experiências mais memoráveis do evento, contando com o acompanhamento musical de três acordeonistas cegos do interior de São Paulo. Nas chamadas “Sessões assinadas”, personalidades como o cineasta Carlos Reichenbach, o maestro Julio Medaglia e o ilustrador MZK foram convidados a criar trilhas sonoras utilizando músicas pré-existentes.
O programa “Cinema alemão antes de Caligari” exibiu nove produções da década de 1910, anteriores ao marco do Expressionismo Alemão, “O Gabinete do Dr. Caligari”, de 1920. Esses filmes, trazidos ao Brasil com o apoio do Goethe-Institut, revelaram um lado pouco conhecido do cinema alemão, que por muito tempo foi deixado em segundo plano por historiadores.
O filme brasileiro “A filha do Advogado” teve acompanhamento musical ao vivo de André Abujamra, que contou com engraçadíssimas intervenções performando algo entre redublagens pontuais e inserções de piadas. Na sessão de encerramento, uma rara cópia colorida de “O Gabinete do Dr. Caligari” foi exibida, enviada ao Brasil pelo Arquivo Nacional da Imagem do Uruguai, com acompanhamento musical da Patife Band, grupo que mistura punk rock com composição dodecafônica.
A escolha dos músicos que acompanharam as projeções foi tão importante quanto a seleção dos filmes. Sob a curadoria de Livio Tragtenberg, as atrações musicais refletiram a diversidade de temas e estilos dos filmes apresentados. Entre os convidados estiveram André Abujamra, Arrigo Barnabé, Michelle Agnes, Maurício Takara, Jorge Peña, Wilson Sukorski e o grupo Frame Circus.
Noitão Belas Artes
O Cinema Belas Artes, localizado na Rua da Consolação, em São Paulo, é um dos últimos cinemas de rua da cidade, conhecido por sua história rica e importância cultural. Fundado em 1943 como Cine Ritz, o espaço passou por várias renomeações ao longo das décadas, refletindo mudanças em patrocínios e gestão, como Cine Trianon, Gaumont Belas Artes e Petra Belas Artes. Em 2024, foi rebatizado como REAG Belas Artes. Apesar das transformações e desafios, o Belas Artes continua sendo um bastião da cinefilia, oferecendo uma curadoria diversificada que vai desde grandes produções de Hollywood até filmes independentes e cults.
O cinema é reconhecido não só por suas sessões regulares, mas também por sua programação especial. Dentre elas, está o “Noitão Belas Artes”, uma maratona mensal de cinema com a primeira edição em 12 de junho de 2004. Unidas por um fio temático, três a cinco salas possuem uma programação pensada para durar da noite de sexta até a manhã de sábado. O “Belas Sonoriza” traz uma experiência de assistir a um filme sonorizado com outra trilha sonora, ao vivo, por bandas ou grupos musicais. O “Porão do Belas” traz quatro sessões dedicadas ao cinema de horror ao longo do mês, interligadas por um tema diferente a cada mês.
A experiência que tive foi em 01 de fevereiro de 2008, quando foi pré-estreia do longa de Tim Burton “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet”. Ainda tinha o nome HSBC Belas Artes e foi a sessão da meia-noite. O programa incluiu ainda a exibição de mais dois filmes pelo preço de um único ingresso: “XXY”, de Lucía Puenzo, e um filme surpresa.
Ao longo de sua história, o Belas Artes enfrentou ameaças de fechamento, sendo alvo de um grande movimento popular em 2011, quando mais de 90 mil pessoas assinaram um abaixo-assinado para evitar o encerramento de suas atividades. Hoje, o cinema continua atraindo um público fiel e multigeracional, que valoriza a experiência única do cinema de rua.
Fontes