Por Paulo Roberto Roggério
Quase ninguém sabe o seu nome, e a chamam carinhosamente de “tia”. Também sua idade é desconhecida; alguns estimam em aproximadamente setenta anos.
Apesar da idade e das marcas que o tempo, a cotidiana exposição ao sol, ao vento e à chuva, ao frio e o ao calor, cravam no semblante de cada um, ela guarda as feições de uma bela mulher, que o tempo não desfez.
Sua simpatia ressalta assim que os moradores ou simples transeuntes com ela conversam: de nada reclama, e de quase nada precisa. Confia plenamente na providência divina.
Essa personagem, que todos conhecem no bairro onde moro, é uma moradora de rua. As agruras da exposição às intempéries, as dificuldades de viver e dormir na rua não mudaram muito suas feições físicas, e talvez tenham polido ainda mais seu belo caráter.
Por isso, é admirada e respeitada por todos quantos a conhecem e a veem, ora numa esquina, ora em outra, a passar o dia e a noite. Não a respeitam pelo que tem, que se resume aos poucos pertences pessoais que pode levar de um lado a outro. Antes, é admirada pelo que ela “é”. E isso é muita coisa.
Ao contrário da maioria, que reside em casas ou apartamentos, ela mora na rua, com toda a amplitude que isso representa.
Sim, porque se alguém deseja entrar em nossa sala, pede licença e permitimos a entrada. E nós, sem essa educação protocolar, entramos todos os dias em sua sala de visitas: “a rua”, sem pedir licença nem para entrar, nem para sair.
Alguns moradores de rua podem dizer que, perdendo seus bens, ganharam as ruas, o que não explica tudo, antes, nem mesmo tangencia todas as questões envolvidas. Por isso, o mínimo que se pode dizer, abstraindo as ponderações sobre as razões pessoais de cada morador de rua, é que eles têm o direito natural de morar, ainda que seja na rua.
E é no direito natural que localizamos o ponto de partida da reflexão sobre as migrações, as quais se sucedem desde os primórdios da humanidade.

Não se trata, agora, do direito natural de alguém a usar a rua como moradia, compulsoriamente, com todos os desconfortos e riscos inerentes, mas de ampliar a possibilidade de moradia para qualquer ponto do mundo, o que se traduz nas migrações individuais e nas grandes migrações.
O fenômeno não é novo, mesmo ganhando realce nos dias atuais pela constante movimentação de populações inteiras, como no Mediterrâneo, que se transforma, ante a precariedade da travessia e a ocorrência de acidentes, em um imenso cemitério.
A História registra os grandes movimentos migratórios, causados, principalmente, pela fome e pela guerra. Condições climáticas extremas, como excesso de calor ou de frio, as secas prolongadas e as inundações, os fenômenos da natureza em erupções vulcânicas, terremotos ou acidentes, tornam a vida insuportável ou difícil em certas regiões, levando as pessoas a uma diáspora forçada para encontrar condições de sobrevivência em outros lugares.
As agruras da guerra, que levam à destruição, para depois reconstruir, constituem outras razões para a mobilidade de populações.
A transferência forçada de seres humanos como escravos, exemplo máximo da exploração do homem pelo homem, é chaga insuperável.
Vários são os exemplos de grandes migrações que se podem colher na evolução da humanidade. Alguns deles, porém, são suficientes.
Devido à grande fome que grassava na terra de Canaã, Jacob levou o povo de Israel ao Egito, onde reencontrou seu filho José, que para lá fora levado como escravo e passou a ser o principal conselheiro do faraó. Esta foi uma grande migração.
Com o passar do tempo, e o falecimento do faraó e de José, o povo egípcio esqueceu-se dos benefícios que José prodigalizara ao faraó e ao Egito, tendo sido o povo todo escravizado.
Foi Moisés quem, seguindo mandamento divino, libertou seu povo da escravidão e o levou à terra prometida, passando quarenta anos no deserto.
Estes comentários, naturalmente, não têm a pretensão de incursionar por fundamentos tão importantes da religiosidade judaico-cristã, mas de ilustrar as migrações com exemplo marcante, descrito no livro do Êxodo, o segundo da Bíblia.
E é no livro do Êxodo que Moisés descreve as leis recebidas diretamente de DEUS. Essas leis compreendem os Dez Mandamentos e outras, como as leis “apodíticas”, nas quais se encontra:
“Não maltrates o estrangeiro nem o oprimas, pois vós fostes estrangeiros no Egito”. (Ex, 22.20)
E o Novo Testamento também cuida dos estrangeiros, como se lê no Evangelho de São Mateus:
“O julgamento das nações” (…) “Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome, e me destes de comer; com sede, e me destes de beber; eu era estrangeiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes me visitar”. (Mt, 25.31-46)
E, se não bastam as citações da Bíblia, a história é riquíssima em exemplos das grandes migrações.
Toda grande migração é forçada, e as principais razões são a fome e a sobrevivência. As causas mais condenáveis são a escravidão, a guerra e todas as outras que levam nações inteiras à fome e à sede.
No século XIX, os povos europeus, e não necessariamente os Estados, passavam grandes dificuldades econômicas. A 1ª Revolução Industrial, cujo início situa-se por volta de 1820, levou a uma grande diminuição dos empregos. Entre a primeira e a segunda Revolução Industrial, esta última no início do Século XX, houve uma revolução dentro da revolução, quando inventado o motor elétrico.
Ao par destes fatores, havia grande concentração fundiária, e as oportunidades escasseavam. Os europeus, além de povos de outros continentes, ansiavam migrar para o Novo Mundo, buscando condições de sobrevivência e de um porvir mais favorável. Diziam eles: “vamos fazer a América”.
Neste contexto, dois acontecimentos tornaram-se célebres, curiosamente no mesmo local, situado na mesma rota, dentre outras, que levavam os migrantes italianos para o Brasil, a Argentina e Estados Unidos, principalmente.
Os migrantes italianos, partindo de todas as regiões do país, dirigiam-se à estação de trens de Milão, de onde partiam para o porto de Gênova, o principal ponto de saída dos migrantes.
Com o intenso movimento de migração, um ministro italiano perguntou aos migrantes porque desejavam viajar, recebendo a célebre resposta, depois imortalizada em uma placa:
“Que entendeis por uma Nação, Senhor Ministro? É a massa dos infelizes? Plantamos e ceifamos o trigo, mas nunca provamos pão branco. Cultivamos a videira, mas não bebemos o vinho. Criamos animais, mas não comemos a carne. Apesar disso, vós nos aconselhais a não abandonarmos a nossa Pátria? Mas é uma Pátria a terra onde não se consegue viver do próprio trabalho?”
E na mesma estação de trens de Milão, o padre Giovanni Battista Scalabrini, fundador da ordem religiosa dos scalabrinianos, canonizado com o nome de São João Batista Scalabrini, foi atender a comunidade que migrava.
Os migrantes disseram-lhe, então, que procuravam novas terras com a esperança de dias melhores, de terra, de trabalho, e da possibilidade de cuidar de suas famílias.
O padre, conhecedor tanto das pessoas quanto das dificuldades da época, disse-lhes, após desejar boa viagem:
“Siete voi ambasciatori d´Italia nel mondo, e portate com voi i nostri valori de religiosità e de operosità”. (Sejam vós os embaixadores da Itália no mundo, e levem convosco os nossos valores de religiosidade e de operosidade).
São João Batista Scalabrini é o padroeiro dos migrantes.
Como se pode depreender, as razões que levam às grandes mobilidades espaciais de populações inteiras existem desde o início dos tempos, e nunca cessarão de existir.
Temos nós e as gerações futuras a possibilidade de evitar muitas causas das migrações. Se as conseguirmos evitar, ao menos em parte, atuaremos por um mundo melhor: combater todas as formas de trabalho assemelhados à escravidão; evitar as guerras e a exploração do homem pelo homem.
Não podemos evitar as catástrofes naturais: seca, chuva, condições climáticas extremas, terremotos, e a fome a sede que se sucedem.
Quando ocorrerem estes fatores sobre os quais não podemos cogitar de controle nenhum, e quando os migrantes devam ser recebidos, perto ou longe, devemos lembrar do que disse DEUS a Moisés:
“Não maltrates o estrangeiro nem o oprimas, pois vós fostes estrangeiros no Egito”.
Ou, como disse JESUS:
“eu era estrangeiro, e me recebestes em casa”.
Lembremo-nos de que nós também fomos estrangeiros, e devemos receber os estrangeiros em casa.
Ou, se preferirmos, precisamos pelo menos adotar a sábia visão da “tia”, a moradora de rua mencionada no início deste trabalho. Tem ela o direito natural de morar na rua, se as convenções humanas lhe retiram o direito a uma moradia.
Os migrantes têm direito natural de outro gênero: o de morar e de ser acolhidos em qualquer lugar do mundo independente do nome do país que os recebe.
Afinal, todos têm o direito natural de morar em qualquer lugar do mundo: na PÁTRIA DE DEUS.