Migrantes na Pátria de Deus

Por Paulo Roberto Roggério

Quase ninguém sabe o seu nome, e a chamam carinhosamente de “tia”. Também sua idade é desconhecida; alguns estimam em aproximadamente setenta anos.

Apesar da idade e das marcas que o tempo, a cotidiana exposição ao sol, ao vento e à chuva, ao frio e o ao calor, cravam no semblante de cada um, ela guarda as feições de uma bela mulher, que o tempo não desfez.

Sua simpatia ressalta assim que os moradores ou simples transeuntes com ela conversam: de nada reclama, e de quase nada precisa. Confia plenamente na providência divina.

Essa personagem, que todos conhecem no bairro onde moro, é uma moradora de rua. As agruras da exposição às intempéries, as dificuldades de viver e dormir na rua não mudaram muito suas feições físicas, e talvez tenham polido ainda mais seu belo caráter.

Por isso, é admirada e respeitada por todos quantos a conhecem e a veem, ora numa esquina, ora em outra, a passar o dia e a noite. Não a respeitam pelo que tem, que se resume aos poucos pertences pessoais que pode levar de um lado a outro. Antes, é admirada pelo que ela “é”. E isso é muita coisa.

Ao contrário da maioria, que reside em casas ou apartamentos, ela mora na rua, com toda a amplitude que isso representa.

Sim, porque se alguém deseja entrar em nossa sala, pede licença e permitimos a entrada. E nós, sem essa educação protocolar, entramos todos os dias em sua sala de visitas: “a rua”, sem pedir licença nem para entrar, nem para sair.

Alguns moradores de rua podem dizer que, perdendo seus bens, ganharam as ruas, o que não explica tudo, antes, nem mesmo tangencia todas as questões envolvidas. Por isso, o mínimo que se pode dizer, abstraindo as ponderações sobre as razões pessoais de cada morador de rua, é que eles têm o direito natural de morar, ainda que seja na rua.

E é no direito natural que localizamos o ponto de partida da reflexão sobre as migrações, as quais se sucedem desde os primórdios da humanidade.

Cena do filme "O Imigrante", de Charles Chaplin (1917)
Cena do filme “O Imigrante”, de Charles Chaplin (1917)

Não se trata, agora, do direito natural de alguém a usar a rua como moradia, compulsoriamente, com todos os desconfortos e riscos inerentes, mas de ampliar a possibilidade de moradia para qualquer ponto do mundo, o que se traduz nas migrações individuais e nas grandes migrações.

O fenômeno não é novo, mesmo ganhando realce nos dias atuais pela constante movimentação de populações inteiras, como no Mediterrâneo, que se transforma, ante a precariedade da travessia e a ocorrência de acidentes, em um imenso cemitério.

A História registra os grandes movimentos migratórios, causados, principalmente, pela fome e pela guerra. Condições climáticas extremas, como excesso de calor ou de frio, as secas prolongadas e as inundações, os fenômenos da natureza em erupções vulcânicas, terremotos ou acidentes, tornam a vida insuportável ou difícil em certas regiões, levando as pessoas a uma diáspora forçada para encontrar condições de sobrevivência em outros lugares.

As agruras da guerra, que levam à destruição, para depois reconstruir, constituem outras razões para a mobilidade de populações.

A transferência forçada de seres humanos como escravos, exemplo máximo da exploração do homem pelo homem, é chaga insuperável.

Vários são os exemplos de grandes migrações que se podem colher na evolução da humanidade. Alguns deles, porém, são suficientes.

Devido à grande fome que grassava na terra de Canaã, Jacob levou o povo de Israel ao Egito, onde reencontrou seu filho José, que para lá fora levado como escravo e passou a ser o principal conselheiro do faraó. Esta foi uma grande migração.

Com o passar do tempo, e o falecimento do faraó e de José, o povo egípcio esqueceu-se dos benefícios que José prodigalizara ao faraó e ao Egito, tendo sido o povo todo escravizado.

Foi Moisés quem, seguindo mandamento divino, libertou seu povo da escravidão e o levou à terra prometida, passando quarenta anos no deserto.

Estes comentários, naturalmente, não têm a pretensão de incursionar por fundamentos tão importantes da religiosidade judaico-cristã, mas de ilustrar as migrações com exemplo marcante, descrito no livro do Êxodo, o segundo da Bíblia.

E é no livro do Êxodo que Moisés descreve as leis recebidas diretamente de DEUS. Essas leis compreendem os Dez Mandamentos e outras, como as leis “apodíticas”, nas quais se encontra:

“Não maltrates o estrangeiro nem o oprimas, pois vós fostes estrangeiros no Egito”. (Ex, 22.20)

E o Novo Testamento também cuida dos estrangeiros, como se lê no Evangelho de São Mateus:

“O julgamento das nações” (…) “Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome, e me destes de comer; com sede, e me destes de beber; eu era estrangeiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes me visitar”. (Mt, 25.31-46)

E, se não bastam as citações da Bíblia, a história é riquíssima em exemplos das grandes migrações.

Toda grande migração é forçada, e as principais razões são a fome e a sobrevivência. As causas mais condenáveis são a escravidão, a guerra e todas as outras que levam nações inteiras à fome e à sede.

No século XIX, os povos europeus, e não necessariamente os Estados, passavam grandes dificuldades econômicas. A 1ª Revolução Industrial, cujo início situa-se por volta de 1820, levou a uma grande diminuição dos empregos. Entre a primeira e a segunda Revolução Industrial, esta última no início do Século XX, houve uma revolução dentro da revolução, quando inventado o motor elétrico.

Ao par destes fatores, havia grande concentração fundiária, e as oportunidades escasseavam. Os europeus, além de povos de outros continentes, ansiavam migrar para o Novo Mundo, buscando condições de sobrevivência e de um porvir mais favorável. Diziam eles: “vamos fazer a América”.

Neste contexto, dois acontecimentos tornaram-se célebres, curiosamente no mesmo local, situado na mesma rota, dentre outras, que levavam os migrantes italianos para o Brasil, a Argentina e Estados Unidos, principalmente.

Os migrantes italianos, partindo de todas as regiões do país, dirigiam-se à estação de trens de Milão, de onde partiam para o porto de Gênova, o principal ponto de saída dos migrantes.

Com o intenso movimento de migração, um ministro italiano perguntou aos migrantes porque desejavam viajar, recebendo a célebre resposta, depois imortalizada em uma placa:

“Que entendeis por uma Nação, Senhor Ministro? É a massa dos infelizes? Plantamos e ceifamos o trigo, mas nunca provamos pão branco. Cultivamos a videira, mas não bebemos o vinho. Criamos animais, mas não comemos a carne. Apesar disso, vós nos aconselhais a não abandonarmos a nossa Pátria? Mas é uma Pátria a terra onde não se consegue viver do próprio trabalho?”

E na mesma estação de trens de Milão, o padre Giovanni Battista Scalabrini, fundador da ordem religiosa dos scalabrinianos, canonizado com o nome de São João Batista Scalabrini, foi atender a comunidade que migrava.

Os migrantes disseram-lhe, então, que procuravam novas terras com a esperança de dias melhores, de terra, de trabalho, e da possibilidade de cuidar de suas famílias.

O padre, conhecedor tanto das pessoas quanto das dificuldades da época, disse-lhes, após desejar boa viagem:

“Siete voi ambasciatori d´Italia nel mondo, e portate com voi i nostri valori de religiosità e de operosità”. (Sejam vós os embaixadores da Itália no mundo, e levem convosco os nossos valores de religiosidade e de operosidade).

São João Batista Scalabrini é o padroeiro dos migrantes.

Como se pode depreender, as razões que levam às grandes mobilidades espaciais de populações inteiras existem desde o início dos tempos, e nunca cessarão de existir.

Temos nós e as gerações futuras a possibilidade de evitar muitas causas das migrações. Se as conseguirmos evitar, ao menos em parte, atuaremos por um mundo melhor: combater todas as formas de trabalho assemelhados à escravidão; evitar as guerras e a exploração do homem pelo homem.

Não podemos evitar as catástrofes naturais: seca, chuva, condições climáticas extremas, terremotos, e a fome a sede que se sucedem.

Quando ocorrerem estes fatores sobre os quais não podemos cogitar de controle nenhum, e quando os migrantes devam ser recebidos, perto ou longe, devemos lembrar do que disse DEUS a Moisés:

“Não maltrates o estrangeiro nem o oprimas, pois vós fostes estrangeiros no Egito”.

Ou, como disse JESUS:

“eu era estrangeiro, e me recebestes em casa”.

Lembremo-nos de que nós também fomos estrangeiros, e devemos receber os estrangeiros em casa.

Ou, se preferirmos, precisamos pelo menos adotar a sábia visão da “tia”, a moradora de rua mencionada no início deste trabalho. Tem ela o direito natural de morar na rua, se as convenções humanas lhe retiram o direito a uma moradia.

Os migrantes têm direito natural de outro gênero: o de morar e de ser acolhidos em qualquer lugar do mundo independente do nome do país que os recebe.

Afinal, todos têm o direito natural de morar em qualquer lugar do mundo: na PÁTRIA DE DEUS.

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