Por muito tempo, o gelo de água foi visto pela ciência como algo praticamente inerte. Apesar de ser classificado como um mineral e apresentar mais de vinte formas cristalinas conhecidas, sua característica mais lembrada sempre foi a capacidade de flutuar, fator essencial para manter o equilíbrio climático do planeta. No entanto, o gelo mais comum — o chamado gelo hexagonal Ih — pode esconder propriedades muito mais surpreendentes.
Pesquisadores liderados por Xin Wen, da Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha, descobriram que esse tipo de gelo é capaz de gerar eletricidade quando sofre deformações irregulares, como torções, dobras ou estiramentos. E o mais impressionante: ele consegue fazer isso por meio de dois mecanismos distintos.
O primeiro deles é a flexoeletricidade, fenômeno relativamente recente na ciência dos materiais e “parente” do conhecido efeito piezoelétrico. Enquanto a piezoeletricidade exige que o cristal tenha simetrias muito específicas para produzir um campo elétrico quando comprimido ou esticado, a flexoeletricidade não impõe essa limitação — basta que haja um gradiente de deformação.
Embora as moléculas de água sejam polares, o gelo, como sólido, é apolar, o que o impede de gerar eletricidade apenas pela pressão — por isso ele não é piezoelétrico. Mas, quando dobrado ou curvado, a simetria permite que surja a flexoeletricidade. Os testes mostraram que o efeito no gelo é comparável ao de cerâmicas eletroativas de referência, como o dióxido de titânio (TiO₂) e o titanato de estrôncio (SrTiO₃).
Além disso, a equipe identificou um segundo fenômeno: um comportamento ferroelétrico na superfície do gelo, perceptível em temperaturas abaixo de -113 °C. Segundo Wen, “o gelo gera carga elétrica sob estresse mecânico em qualquer temperatura, mas, em condições extremamente frias, forma-se uma fina camada ferroelétrica na superfície”. Esse tipo de material pode ter sua polarização elétrica invertida por um campo externo, de forma semelhante à inversão dos polos de um ímã.
Com isso, o gelo passa a ser visto como um material com potencial comparável ao de eletrocerâmicas avançadas usadas em sensores e capacitores — e com duas formas distintas de gerar eletricidade: ferroeletricidade em temperaturas muito baixas e flexoeletricidade até o ponto de fusão, próximo de 0 °C.
Embora ainda seja cedo para imaginar geradores elétricos de gelo funcionando nos polos da Terra, na Lua ou em Marte, a descoberta traz outra implicação fascinante: a flexoeletricidade pode explicar a eletrificação das nuvens durante tempestades.

Sabe-se que os raios surgem quando partículas de gelo colidem nas nuvens, acumulando carga elétrica até que o potencial seja liberado em forma de descarga. O enigma sempre foi entender como essas partículas se carregavam, já que o gelo não responde à compressão com geração de eletricidade. Agora, a hipótese é que as deformações irregulares durante as colisões ativem a flexoeletricidade, fornecendo a carga necessária para dar início ao espetáculo luminoso dos céus.
Fontes
- Inovação tecnológica – Gelo gera eletricidade e desvenda mistério dos raios
- Wen, X., Ma, Q., Mannino, A. et al. Flexoelectricity and surface ferroelectricity of water ice. Nat. Phys. (2025). https://doi.org/10.1038/s41567-025-02995-6