A Previdência e a forquilha

Por Paulo Roberto Roggério

Ainda que para alguns possa não parecer, e para outros ainda a questão esteja distante, a verdade é que o Estado passa por um de seus períodos momentosos ou emblemáticos, pela necessidade de escolher por determinadas decisões, em questões especialmente relevantes: a forquilha, citada no título, empresta, por sua forma, o significado de uma encruzilhada ou bifurcação, para mostrar os caminhos distintos postos à opção do Estado.

Ao Poder Público, que administra o Estado e é exercido em forma tripartite por Legislativo, Executivo e Judiciário, se apresenta a difícil, mas inevitável, obrigação de ajustar as contas públicas, neste início do ano de 2015. Certamente difícil, mas necessária obrigação do Estado, lembrando a máxima de que, com dinheiro, é fácil administrar as finanças pessoais, de uma empresa ou de um país.

A questão reclama ainda o concurso da análise de uma dúvida semântica: um dos objetivos do Estado deve ser o “desenvolvimento socioeconômico” ou o “desenvolvimento econômico e social”? Esta questão é propositalmente colocada com estas duas únicas alternativas, pois uma terceira, por hipótese: nenhuma das anteriores, significa a negação do Estado e da necessidade de Estado.

É bem verdade que algumas formas de desenvolvimento social são possíveis apenas após o desenvolvimento econômico. Neste caso, pela perspectiva de que são necessários recursos econômicos para propiciar conquistas sociais, a hipótese contemplada seguiria um entendimento meramente cronológico. A questão que se coloca é de fundo: o objetivo de um Estado deve ser o desenvolvimento econômico, para que deste o desenvolvimento social seja apenas uma consequência, ou o desenvolvimento social é que deve ser o objetivo de Estado, sendo o desenvolvimento econômico um meio para o fim maior?

O bom senso inclina à segunda alternativa, como única possível a amoldar-se aos objetivos do Estado: o objetivo do Estado é o Ser Humano, sendo todos os outros, incluindo o objetivo de desenvolvimento econômico, um meio para que o Estado cuide dos homens e das mulheres que compõem o Estado.

Sendo, pois, indispensável o saneamento das contas públicas, de forma a equilibrar as receitas e as despesas totais, a contribuição deve ser partilhada por todos.

Um conjunto de medidas de natureza econômica, restringindo ou eliminando direitos trabalhistas e previdenciários, foi editado pelo Executivo e deverá ser votado pelo Legislativo e as demandas a que der causa serão julgadas pelo Judiciário, responsável também pelo controle de constitucionalidade das referidas normas editadas por medidas provisórias.

A estimativa de economia é de R$18 bilhões anuais com as novas regras para o abono salarial pago aos quotistas do PIS; para o seguro-desemprego, para o auxílio-doença e para a pensão por morte.

O benefício previdenciário de pensão por morte é o que merece maior reflexão por parte do Executivo, que editou a Medida Provisória, do Legislativo, que, ao votar, a convolará, ou não, em Lei, e do Judiciário, que deverá julgar, quando provocado, a constitucionalidade, e não a letra fria da lei, do que vem a ser a pensão por morte.

A Medida Provisória no. 664, de 30 de dezembro de 2014, com vigência prevista a partir de 01.03.2015 [para as regras da pensão por morte], não trata simplesmente de economia em verbas do orçamento do INSS – Instituto Nacional do Seguro Social.

Cuida-se aqui da quebra de paradigmas muito importantes.

O seguro social, obrigatório por força de lei, e por força do bom senso, é formado por contribuições dos “segurados” empregados, autônomos e empregadores, calculadas sobre suas rendas, acrescidas cada uma delas de contribuições das empresas, pessoas físicas ou entidades, públicas ou privadas, que os remuneram, em regra calculadas também sobre o valor dos salários ou honorários pagos. O seguro social também é financiado por outros tributos, como a COFINS e a CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a primeira sobre o faturamento das empresas, e a segunda sobre o lucro tributável.

Com estas receitas, próprias da atividade securitária, a entidade gestora do seguro social deve pagar os “riscos”, em termo tomado de empréstimo da atividade de seguros, sendo eles a aposentadoria, a pensão e o auxílio, por acidente ou por doença.

O sistema de aposentadorias compreende três tipos: por tempo de serviço, ora chamado de por tempo de contribuição, quando o segurado contribuiu durante sua idade laboral útil e, esgotando-se suas forças, não pode mais obter recursos do trabalho para sua sobrevivência; por invalidez, quando um acidente ou doença incapacitante impeça o segurado de continuar a trabalhar, e por idade, quando o passar dos anos impede o indivíduo de, por si, trabalhar e receber retribuição para sua sobrevivência.

Sem falar dos auxílios por acidente e por doença, os quais são transitórios por natureza, e sem falar ainda da pensão por morte, a primeira conclusão que a lógica obriga a alvitrar é que tanto as contribuições dos empregados, autônomos e empregadores, como as das empresas ou entidades que os remuneram, além dos tributos pagos por toda a sociedade [a COFINS e a CSLL integram o preço de cada bem ou serviço consumido] constituem apenas o SEGURO SOCIAL, que é parte da PREVIDÊNCIA SOCIAL.

Enquanto o Seguro Social administra a arrecadação das contribuições previdenciárias, e o pagamento das aposentadorias, auxílios e pensões, Previdência Social é um conceito de muito maior amplitude e concretude, pois traduz o objetivo e o dever do Estado em atender o cidadão nas necessidades que não pode, por si próprio, atender, e que, por isso mesmo, deu origem ao Estado. A Previdência Social é objetivo e dever de Estado da mesma magnitude que Educação e Saúde, Defesa e Segurança Pública, Relações Exteriores, Cultura e Esportes etc …

A nação que se ocupa da Previdência Social, sem restringi-la ao Seguro Social, garante ao cidadão, durante sua vida útil para o trabalho, que não será desamparado quando terminar sua capacidade laboral, ou sobrevier um acidente ou moléstia incapacitante, ou quando a idade chegar, levando embora as forças para o trabalho.

A Previdência Social é uma das razões de ser do Estado, e a razão única da existência das atividades do seguro social.

A decorrência natural e lógica é de que a previdência social, custeada pela sociedade e administrada pelo Poder Público, seja vitalícia, é dizer: não há sentido em retirar ou eliminar qualquer forma de aposentadoria depois de certo tempo.

O mesmo se dá com a pensão por morte. Se a aposentadoria, em torno da qual erigidos os sistemas de previdência social e os subsistemas de seguro social ao redor do mundo, deve ser vitalícia, assim o é para o segurado, que contribui, e para sua família ou dependentes, que também sobreviverão da mesma aposentadoria.

O primeiro paradigma que a Medida Provisória no. 664 quebra é a vitaliciedade do sistema previdenciário. Como redigida a Medida Provisória, as novas regras, que extinguem a pensão por morte no decorrer do tempo, com exceção das pensões pagas às pensionistas que estejam na meia idade, são duplamente duras com as pensionistas, pois elas saberão que, no mais das vezes, perdendo o arrimo do falecido, que provia o sustento da entidade familiar, e sem poder trabalhar, para cuidar dos filhos, se verá, em idade mais avançada, sem pensão e sem poder ocupar um posto de trabalho, tanto pela idade, quanto pela ausência do sistema por longos anos.

O segundo paradigma quebrado é o de que, bem ou mal, a aposentadoria ou a pensão deve ter um valor que assegure a sobrevivência do indivíduo e de sua família, preservada a sua dignidade, esta alçada à condição de cláusula pétrea da Constituição Federal (artigo 1º). A regra de que a viúva receberá 50% da aposentadoria que recebia ou teria direito o segurado falecido, no caso o homem, mais 10% por filho até a idade de 18 anos, é injusta sob qualquer prisma que se analise a proposição.

A premissa sobre a qual baseada esta Medida Provisória, prevista para vigorar em 1/março/2015, seria de que o aposentado, falecido, não realiza mais despesas próprias. Há um engano sensível aqui.

A premissa seria válida se, e apenas se, não concorressem todos os fatores a seguir, e que já reduziram antes a aposentadoria, isto é, tornou-a sensivelmente menor do que o último salário ou rendimento da ativa:

  1. Média de cálculo: a aposentadoria é calculada pela média das contribuições registradas desde 1.7.1994, excluídas as 20% menores. Período tão longo [e com o passar do tempo a situação será mais clara] compreende fases distintas da carreira profissional: início, desenvolvimento e ponto máximo. Estas contribuições são corrigidas monetariamente, o que apenas traduz, em valores de hoje, o poder aquisitivo que os salários tinham em sua época. A correção monetária apenas atualiza valores, sem representar ganho ou perda. Assim, a mera correção monetária apenas atualiza os valores de todo o período, mas não contempla, no total, os ganhos decorrentes de promoções, por mérito, e até o simples aumento salarial de um dissídio coletivo;
  2. Resultado: qualquer que seja o resultado da média, o valor será sempre inferior ao último salário da ativa;
  3. Teto máximo: ainda que fosse matematicamente possível, e o cálculo da média dos salários corrigidos desde 1.7.94 fosse superior ao teto máximo de contribuições, prevaleceria o teto máximo para calcular a aposentadoria.
  4. Fator previdenciário: apurada a média dos salários corrigidos, observado o teto máximo, o salário de benefício encontrado ainda não é definitivo, pois este sofrerá a redução do fator previdenciário.

Se a aposentadoria do segurado falecido, a qual será transformada em pensão por morte, fosse equivalente ao maior salário da ativa, então seria possível atribuir razoabilidade à fração da aposentadoria (50%) que será paga à pensionista.

A redução em 50%, ou 40%, conforme o texto final da lei, somente seria justificável, como mencionada, se a aposentadoria fosse igual ao maior salário da ativa, e não tivesse sofrido as reduções pela média de salários mais baixos e mais altos em período contado desde 1994; da desconsideração dos aumentos por promoção e por dissídio coletivo e, especialmente, do fator previdenciário.

Todas estas reduções se traduzem em um seguro social de pensão por morte, inferior às necessidades da entidade familiar assistida, pois é justamente com o avanço da idade que surgem novas despesas: o plano de saúde se torna mais caro; surge a necessidade de uso de medicamentos etc …

Além do quê, as demais despesas de uma família não são reduzidas proporcionalmente, pelo falecimento de um de seus membros. O exemplo mais notável é o de despesas condominiais, cobrada pelo condomínio independentemente do número de moradores em cada unidade.

Outro paradigma importante também vem sendo quebrado, este não exclusivamente em razão da Medida Provisória. Trata-se do financiamento tradicional da seguridade social por contribuições dos segurados; por contribuições das empresas, pessoas físicas e entidades que remuneram os segurados; e por toda a sociedade, que paga os tributos destinados ao financiamento da seguridade social: a COFINS e a CSLL.

Digno de nota, neste sentido, é o fato de que, em 2014, as contas públicas apresentaram déficit total de 343 bilhões de reais [déficit nominal].

No mesmo período, as “desonerações” concedidas [não exclusivamente em relação às folhas de pagamento] atingiram 104,043 bilhões de reais, com redução da COFINS, em desonerações da CSLL, e especialmente 21,568 bilhões, pela diferença entre o sistema tradicional de contribuições das empresas sobre a folha de pagamentos, e o sistema de “desoneração da folha”, este consistente em um porcentual sobre o faturamento, para ramos econômicos determinados.

São valores muito superiores ao conjunto de todas as medidas que reduzem benefícios trabalhistas e previdenciários: seguro desemprego; abono salarial; auxílio-doença e pensão por morte.

A reflexão é de rigor: para toda a sociedade, como financiadora da seguridade social, que deve prever se o sistema de “desoneração” da folha de pagamentos tem alguma eficácia, além de um alívio imediato: os números e a Medida Provisória estão a demonstrar que o valor da desoneração da folha, não recebe contrapartida nos valores cobrados sobre o faturamento.

Em outras palavras: não é possível arrecadar mais, cobrando menos. As alíquotas da desoneração da folha, para os setores que passaram a recolher porcentuais sobre o faturamento, são claramente insuficientes, e um dia deverão ser ajustadas. Aliás, não pode existir propriamente uma desoneração, se o que era cobrado antes na folha ora é cobrado sobre o faturamento.

E o Estado deve refletir sobre a manutenção da Previdência Social, isto é, de manter a pensão por morte observando os princípios previdenciários mais amplos, e não meramente securitários. O valor da pensão por morte deve ser igual ao da aposentadoria, e vitalício. Afinal, se o aposentado não tivesse falecido, sua aposentadoria seria destinada, também vitaliciamente, ao sustento da família.

Sem descurar da necessidade de ajustar as contas públicas, e sem abdicar do poder de usar a política tributária para regular o consumo e a produção de riquezas, é de rigor que o Executivo, que propôs a Medida Provisória no. 664; o Legislativo, que a deverá votar, transformando, ou não, a Medida Provisória em Lei, e o Judiciário, que deverá julgar certas consequências da Lei, além do exercer o controle de constitucionalidade, em concreto ou em abstrato, avaliem se este é o melhor caminho para o ajuste das contas públicas.

A quebra dos paradigmas não traz, necessariamente, nenhum benefício social, ao contrário, traz insegurança social com pouquíssimo benefício econômico. Não se olvide que mais de 52% das pensões são iguais ao salário mínimo, antes das mudanças. Ainda que 100% das pensões por morte sejam iguais ao salário mínimo, o benefício econômico não compensará o custo social.

Talvez o fim das desonerações, dada a magnitude dos valores vistos no ano de 2014, e a volta ao sistema tradicional proporcione, à Previdência Social em particular, melhores resultados que a mencionada Medida Provisória.

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